Revista de estudos orientais


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3. Conclusão
Depois  da  tentativa  de  fazer  emergir  a  relação  nutrida  entre  os  árabe-
muçulmanos e as drogas, um problema, que se desdobra em variadas questões, surge 
imediatamente. Por que substâncias usadas pela medicina, pela farmacopéia e por 
homens e mulheres que buscavam experiências prazerosas foram transformadas 
ou  deformadas  pelos  interesses  das  sociedades,  a  ponto  de  serem  amplamente 
condenadas na época moderna? 
As lojas de drogas vendiam um sem-número de ervas e derivados que eram, 
em grande parte, comprados pelas gentes molestadas por algum tipo de doença. 
Misturas eram feitas, novas descobertas também. Foi assim que se pôde discernir o 
caráter medicinal de tantas ervas, flores, frutos, extrações. 
Sanadas as necessidades primárias de combate aos males, os homens se deram 
a  partilhar  um  novo  tipo  de  experiência:  o  prazer  advindo  das  substâncias  já 
conhecidas. Buscava-se pelos “promotores de felicidade”, estes “despertadores de 
consciência cósmica”, que, para Huxley, haviam sido descobertos “antes da aurora 
da História”
33

Os  árabes  compartilhavam  dessas  práticas  na  medida  em  que  permitiram  a 
circulação e o uso de diversos psicoativos. Inebriantia, phantastica e euphorica
34

33. HUXLEY, A. Moksha. p. 185.
34. Embora se utilize, aqui, o termo psicoativo para nomear substâncias distintas e responsáveis por variadas 
experiências, é preciso lembrar que há inúmeras outras classificações, como aquela do alemão Louis Lewin. 
No início do século XX, o farmacólogo classificou as substâncias que agem sobre o corpo e/ou a mente em 

Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas...
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inclusive, estiveram à venda nos mercados, foram utilizados como medicamentos, 
puseram-se ao alcance de quem acreditava no seu poder benéfico sobre o corpo. 
Califas, vizires, cadi e outros dignitários islâmicos toleraram o consumo dos 
psicoativos ou sentiram o poder de tais substâncias. Correntes místicas, como o 
sufismo,  tiveram,  entre  seus  adeptos,  entusiastas  do  vinho.  Sobre  o  inebriante, 
Hazrat Inayat Khan escreveu a seguinte poesia: “Tu derramaste vinho na minha 
taça  vazia  onde  quer  que  nos  encontrássemos,/  sobre  colinas  e  vales,  sobre  os 
topos das altas montanhas,/ nas espessas florestas e nos desertos estéreis,/ sobre 
as praias do mar agitado e sobre as margens do rio tranqüilo;/ e lá, ergueu-se em 
meu coração a paixão não-terrena e a alegria celeste”
35
.
A busca do místico se faz através da bebida: ele atinge uma alegria além das 
possibilidades mundanas. Outra substância capaz de induzir o crente a um estado 
de  iluminação  espiritual  foi  o  haxixe.  Embora  a  resina  tenha  sido  vastamente 
difundida pela sociedade islâmica, a conduta ascética desses homens de classes 
inferiores foi repudiada pelos árabes.  
Também  Muhammad  teve  sua  experiência  de  êxtase.  O  “vôo  noturno”  do 
profeta levaria inúmeros sufis a buscar práticas de ligação com a divindade. Depois 
desses “vôos”, os místicos islâmicos carregaram a religião “com luz, amor e uma 
fragrância divina que não vinha deste mundo” contra “o legalismo sufocante que 
ameaçava comprimir o Islã”
36

Quem  poderá  rechaçar  a  idéia  de  que  a  fragrância  divina,  que  não  fazia 
parte  deste  mundo,  fosse  evocada  por  tâmaras  –  frutas  prediletas  do  profeta  – 
transformadas em bebida inebriante ou que os “vôos noturnos” compartilhassem 
os mesmos indutores da experiência mística que aqueles usados pelos sufis?
O Islã conheceu os sofrimentos do corpo, e engendrou formas de aliviar os 
males dos homens. Esteve atento à sexualidade humana, e teceu, portanto, uma 
relação  profícua  com  o  corpo.  Em  inúmeras  passagens  do  Corão,  é  possível 
perceber referências recorrentes ao sêmen, ao sangue, ao deleite. Todos os homens 
e todas as mulheres têm direito igual ao prazer. Se foi assim com o sexo, por que 
não seria também com o uso de psicoativos? Afinal, significaria, em última análise, 
defender a própria satisfação corporal. 
cinco grupos: excitantia, euphorica, hypnotica, inebriantia e phantastica. Nesse sentido, álcool, haxixe e ópio 
corresponderiam, respectivamente, a inebriantia, phantastica e euphorica.
35. EICHEMBERG, N. R. (trad.). O coração do sufismo. p. 196.
36. ROGERSON, B. O profeta Maomé, uma biografia. p. 144.

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Quando pensamos no haxixe e no ópio, não deparamos com o interdito – pelo 
menos durante o período clássico. O álcool, como sabemos, foi proibido, mas a lei, 
transgredida. Não se poderia, em algumas páginas, levantar as possíveis causas para 
o recrudescimento da interdição às drogas, na sociedade islâmica. Principalmente, 
se a tratássemos como um bloco homogêneo, que passou por processos idênticos 
de formação de identidade, constituição política, comportamento social.  
Pode-se  pensar  em  algumas  questões,  que  contribuíram  para  endossar  a 
vertente  proibicionista:  à  medida  que  houve  a  constituição  dos  Estados-Nação, 
com  demarcação  de  fronteiras  e  organização  política,  revelou-se  uma  quase 
incapacidade de separar Estado da religião. O resultado são governos pautados no 
Corão, que utilizam um documento produzido ao longo do século VII d.C. como 
manual jurídico. Daí advêm práticas que não condizem com a realidade vivida, 
punições severas ou mesmo atrozes. São ações como estas que continuam a impelir 
as sociedades islâmicas para longe da “modernidade”.
 Modernidade tecnológica e científica, é bom que se diga. Afinal, o corpo – tanto 
no Ocidente quanto no Oriente – continua a pagar um alto preço por seus desejos. 
As drogas, outrora agentes de cura ou de uso pessoal, entre os muçulmanos, foram 
incorporadas  ao  discurso  oficial  em  voga  no  mundo  “civilizado”,  que  passou  a 
rechaçar, proibir e punir duramente os que se arriscam a utilizá-las. 
A  sociedade  islâmica,  outrora  aberta  e  simpática  aos  desejos  dos  corpos, 
escondeu o sexo sob os cuidados do segredo, da decência e da modéstia. A reboque 
desse  comportamento,  homens  e  mulheres  tornaram-se  indecifráveis  perante  o 
proibido. Para Nietzsche, o homem islâmico mostrava-se como o sujeito do “não”, 
o reativo. Diante disso, cabe inteiramente a pergunta feita por Foucault: “o que 
alguém deve saber sobre si para que esteja disposto a renunciar a qualquer coisa?”. 
O corpo continua a ser um enigma. 
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263
FACES E CONTRAFACES: ALgUNS
ASPECTOS DA ObRA DE AmóS Oz
1
Berta Waldman*
Resumo:  Este  ensaio  alinhava  o  cruzamento  de  aspectos  políticos  na  obra 
literária  de  Amós  Oz.  Questões  antes  reprimidas  pela  geração  de  escritores 
vinculada  à  fundação  do  Estado  de  Israel  vêm  à  tona  na  literatura  de  Oz.  Meu 
intuito foi ressaltar o lugar de destaque que essa literatura dedica à presença e à 
voz do “outro.”
Palavras-chave: literatura, política, árabes, judeus, “nós”, “eles”.
Abstract: In this essay the author cross-stiches political aspects of Amos Oz’ 
literary work. Issues previously repressed by the writers’ generation connected to 
the foundation of the State of Israel, emerge in Oz´ literature. The author’s aim is to 
highlight how this literature sticks out the presence and the voice of the “other”.
Key words: literature, politics, Arabs, Jews, “we”, “them”.
  O  autor da literatura israelense contemporânea mais traduzido para o português 
é Amós Oz
2
. E também o mais apreciado pelos leitores.  Sua passagem por São 
Paulo apenas confirmou a simpatia e  o carisma que cercam o escritor e sua obra, 
traduzida para cerca de trinta idiomas.
 Professor de literatura na Universidade  Ben Gurion, Amós Oz vive em Arad, 
no deserto do Neguev, em Israel. Contrapondo-se  às idéias feitas que perpetuam 
a discriminação, a intolerância, a opressão, o autor não escreve “em linha reta”; 
1. Este trabalho retoma elementos de outro ensaio, “Literatura e política: alguns aspectos da obra de Amós Oz”, 
mas amplia o anterior e  dá-lhe outra direção. Cf. Linhas de Força: Escritos sobre literatura hebraica. São 
Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.
* Professora Titular na Área de Língua e Literatura Hebraica do Departamento de Letras Orientais da FFLCH 
– USP.
2. As obras de Amós Oz traduzidas para o português são: Conhecer uma mulher (trad.Nancy Rozenchan). 
São Paulo: Companhia das Letras,1992. A Caixa Preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das 
Letras,  1993.    Fima  (trad.  George  Schlesinger).  São  Paulo:  Companhia  das  Letras,  1996.  Não  diga  noite 
(trad.George Schlesinger) São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Pantera no porão  (trad. Milton Lando 
e Isa Mara Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 1999. O mesmo mar (trad. Milton Lando) São Paulo: 
Companhia das Letras, 2001.: Meu Michel (trad. Rifka Berezin et. alii). São Paulo: Summus, 1982. (trad. 
Milton Lando) São Paulo: Companhia das Letras, 2002.  De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: 
Companhia das Letras, 2005.

Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz
264
para  ele  todas  as  coisas  são  plurais  e  multívocas.  Sua  obra  autobiográfica  De 
amor e trevas
3
 é um exemplo disso. Multifacetada e móvel, um caleidoscópio de 
lembranças  recuperadas e imaginadas, misto de referencialidade e subjetividade,  
a obra retrata não um sujeito, mas vários, ou um autor multiforme, que se move 
sem cessar entre a “verdade” e a ficção, entre o passado e o presente, entre aquele 
que conta e o que é contado, substituindo o ponto final pelo texto necessariamente 
incompleto e aberto.
De amor e trevas retoma a vida de Amós Oz da infância numa Jerusalém sob  
domínio  britânico  à  sua  transformação  em  escritor.  De  Jerusalém  passa  a  viver  
no kibutz
4
 Hulda, onde permanece por muitos anos e ali adota seu pseudônimo 
literário. A casa em que cresceu, o peso do fracasso do pai e a ferida aberta da mãe, 
a obrigação de redimir a ambos transformando os fracassos deles em vitórias, os 
idiomas falados em Jerusalém e pelos pais e parentes, a personalidade complexa de 
cada um deles, as referências aos livros que leu e os que compunham a biblioteca 
dos pais,  a mudança de rumo ocorrida a partir do suicídio da mãe,  episódio que 
pontua o romance do começo ao fim, o nascimento de uma nação num mundo ainda 
banhado no sangue da Segunda Guerra Mundial, a multidão de refugiados, pioneiros, 
sobreviventes que a povoaram, os intelectuais mais próximos como o tio Yossef 
Klausner, o contato com o escritor Schai Agnon, os políticos e pais fundadores da 
nova nação, todos  fluem diante dos olhos do leitor na construção de um grande 
painel histórico e humano. O romance termina com o suicídio da mãe de Amós Oz, 
aludido em diferentes partes,  marcando o lugar de um aprendizado precoce a que o 
menino de doze anos se submete e a partir do qual esse menino  terá que   reinventar 
uma variedade de sentidos que justifiquem continuar vivendo. O núcleo  irradiativo 
desse romance é a morte da mãe. Todo o relato se move em círculos ao redor dessa 
morte, modulando o foco em aproximações e distanciamentos de modo a capturar 
da história dos ascendentes do escritor à construção de um país,  apresentados a 
partir de um ponto de vista. Quer dizer, é em torno de um nódulo subjetivo e afetivo 
que a memória pessoal e familiar dispara na construção dessa grande tela narrativa 
que é o romance.
“Foi muito difícil para mim criar essa estrutura. Como fazer as modulações 
entre uma conversa com ben Gurion, as fantasias e histórias de minha mãe, a vida 
em Israel há 90 anos, a cultura do kibutz e minha vida atual em Arad/.../? Como 
3. De amor e trevas, op. cit.
4.  Kibutz  (em  port.,  comunidade):  comunidade  economicamente  autônoma  baseada  no  trabalho  agrícola  e 
agroindustrial, parte importante do projeto político-ideológico da fundação do Estado de Israel.

Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008
265
orquestrar tudo isso? Foi um enorme problema musical. As pessoas me perguntam 
se foi muito difícil fazer uma confissão. Confessar não é nada ao lado de criar uma 
estrutura e a combinação artística capaz de harmonizar todas essas coisas.”
5
 
Pantera no porão
6
 também pode ser lido como uma evocação autobiográfica. 
Narrado retrospectivamente pelo protagonista já adulto, décadas depois dos eventos 
apresentados, o romance focaliza Jerusalém, no verão de 1947, ainda sob o mandato 
britânico, um ano antes da criação do Estado de Israel. O protagonista de 12 anos 
por acaso faz amizade com um militar britânico tímido e bonachão, um admirador 
da tradição judaica, que conversa com o garoto num hebraico bíblico. Enquanto o 
menino pensa estar extraindo do inimigo importantes segredos militares, é acusado 
por  seus  amigos  de  traidor.  Mas  conversar  com  o  invasor  é  traição?  É  traição 
enganar  o  inimigo  por  meio  de  uma  falsa  amizade?  Essa  amizade  era  falsa  ou 
verdadeira?  Décadas depois, o menino torna-se escritor e continua obcecado pelo 
sentido das palavras. Quem trai quem quando se aproxima do inimigo?
O interesse pelo opositor inglês em 1947 será substituído pelo árabe, que marca 
presença nos textos literários de Amós Oz e também nos textos políticos.  Numa 
prosa  que  equilibra  o  lirismo  e  a  reflexão,  a  política  e  a  metafísica,    o  escritor 
transfere para a esfera íntima aspectos da história israelense ressaltando o conflito 
com os palestinos,  questão reprimida  na geração dos escritores contemporâneos 
à formação do Estado. 
Fazer  que  idéias  ou  ideologias  ganhem  vida,  esse  vem  sendo  o  propósito 
de Amós  Oz,    ficcionista  e  militante  político  da  esquerda  israelense,  ligado  ao 
movimento pacifista Shalom Ahshav (Paz Agora).  A partir da década de 70, Oz  
assume uma atitude crítica apontando na imprensa escrita e televisiva sua posição 
a propósito dos rumos políticos do país. O homem político transparece na ficção de 
forma  engenhosa, conforme veremos em alguns textos, principalmente em  Meu 
Michel e, mais especificamente, em A Caixa Preta.
Desde o início de sua carreira de escritor, é possível  observar algumas chaves 
que podem ser usadas até hoje para interpretar a narrativa de Amós Oz.  No conto 
“O nômade e a serpente”
7
 e no romance Meu Michel 
8
, por exemplo,  a fábula 
não é o mais importante, mas serve para pôr em relevo o sentimento ambivalente 
5. (http://www.pazagora.org/detailartigo cfm?/dArtigo+292)
6. Pantera no porão, op.cit.
7. Incluído na coletânea Nas Terras do Chacal, que reúne contos escritos entre 1962-1965. Publicada em Ramat 
Gan, pela Editora Massada,  em 1965. Os contos foram reescritos pelo autor posteriormente e publicados pela 
Editora Am Oved, em 1976. Existe tradução do conto para o português, In: O Novo Conto Israelense (coord. 
seleção, orientação das trad. Rifka Berezin). S.P.: Ed.Símbolo, 1978.
8. Meu Michel , op. cit.

Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz
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de  atração-repulsão  que  percorrerá  a  obra  do  autor.  A  atração  de  Gueula  pelo 
repugnante nômade no conto “O nômade e a serpente”, ou a de Hana pelos gêmeos 
palestinos em Meu Michel servem ao autor para expressar traços profundos em 
perpétua  luta.  O  mundo  escuro  e  selvagem,  os  instintos  eróticos  e  letais  são 
ameaçadores  mas  atraem  mais  que  a  fachada  da  vida  tranqüila  e  luminosa  da 
sociedade  bem  constituída,  que  se  apresenta  como  tranqüilizadora,  mas  menos 
atraente que o subsolo misterioso e sombrio representado por elementos hostis, 
levando as personagens a se debaterem entre esses dois mundos contraditórios, que 
não recebem, na pena do autor, qualificativos morais.
É  interessante  observar  a  presença  da  minoria  árabe  nesses  dois  textos  de 
Amós  Oz,  presença  reprimida  na  primeira  geração  da  literatura  israelense.  No 
conto, o autor apresenta o ponto de vista de uma maioria israelense distanciada da 
minoria árabe, embora haja alguns gestos indecisos no sentido de atribuir-lhe certa 
autonomia. Entretanto, o narrador  confessa ser incapaz de entender os caminhos 
da minoria. Por outro lado, esse mesmo narrador  apresenta-se como cúmplice do 
ato de vingança contra os nômades, apesar da incerteza em relação à identidade dos 
ladrões que estariam surrupiando objetos de menor monta no kibutz. A posição do 
narrador é incerta, oscilante, e, enquanto isso, maioria e minoria entram num jogo 
de medição de forças, cujas fronteiras aparecem ora relevadas, ora apagadas. Não 
se pode esquecer que o processo de construção do estado-nação israelense envolveu 
uma luta conduzida em termos  de maioria e minoria nacionais. A presença de uma 
minoria nacional em um Estado não é apenas um problema quantitativo, mas tem 
implicações qualitativas nas esferas econômica e social. Sem dizer que um estado-
nação baseia-se na homogeneização formadora de um “nós”, que exclui os que são 
“eles”. O conto de Oz  problematiza  o papel dialético da minoria na fundação do 
Estado, tensionando a comunidade kibutziana e os beduínos que foram “trazidos 
pela fome”, em sua busca de sustento. Indo além das noções de distinção sexual 
ou étnica, o retrato apresentado no conto representa a diversidade da minoria em 
termos  de  interesses  concretos  que  podem  chocar-se  com  aqueles  da  maioria. 
Nesse embate, há duas possibilidades: ou o Estado de Israel é um estado judaico 
e exerce um poder soberano que lhe permite ignorar e desconhecer o modo de 
vida e os motivos da minoria, ou é um estado de maioria judaica e, nesse sentido, 
deverá explorar de modo ativo as possibilidades que lhe advêm em virtude de sua 
situação de maioria. O conto aponta para uma ambigüidade em relação à decisão 
entre essas possibilidades. Por isso, o narrador titubeia,  a polícia é ambivalente em 
relação à “ocupação” dos nômades, a personagem  feminina mal-entende o que lhe 
acontece, os nômades têm um comportamento dúbio em relação aos israelenses. 
Nada é claro, porque há uma situação de fundo básica que não se resolve.  Quando 

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Gueula, no final da narrativa, deixa  o nômade e encontra-se sozinha, ela olha os 
aviões militares no céu, mas seu olhar, diz o texto, “é relutante”. As luzes cintilantes 
dos aviões e as batidas dos tambores árabes se justapõem e entrelaçam, tornando 
indistinto  os  símbolos  da  maioria  e  da  minoria.  Extasiada,  Gueula  não  percebe 
que seu corpo está bloqueando um buraco onde há uma víbora, por isso, termina 
mordida e morre. A cobra não se deixa intimidar pelas luzes do avião, e mesmo 
os símbolos mais poderosos de soberania não a impedem de matar a moça que 
despertou sua raiva, uma raiva que, segundo o texto, “não é arbitrária”. Enquanto a 
víbora olha sem piscar, Gueula está de olhos fechados. Assim, o simbolismo fálico 
da  serpente  ligado  ao  nômade  traz  para  o  seu  clímax  uma  história  de  cegueira 
política repleta de implicações. 
Em  1968, Amós  Oz  publica  Meu  Michel,  onde  deixa  de  lado  o  kibutz,  que 
retomará posteriormente, para se deter na história de Hana, uma jovem casada, que 
vive uma existência dividida entre a realidade de um casamento cinzento e prosaico 
e um desejo de auto-realização através de situações oníricas onde os protagonistas 
são  dois  gêmeos  palestinos,  amigos  de  infância,  que  depois  da  guerra  de  1948 
ficaram do outro lado.
O narrador personagem – a mesma Hana – conta a história de tal modo que 
se produz uma disparidade entre os acontecimentos tais como são contados pelo 
narrador e como são entendidos pelo leitor. Alguns críticos comparam a narradora/
protagonista com a do conto de Agnon - Bidmei Iameiha (“Na Flor da Idade”)
9
  
- e consideram ambas fideindignas como narradoras, mas há uma distinção entre 
ambas: Hana Goren vive num mundo de fantasias e desilusões marcadas por um 
isolamento infantil e por um desejo de violência masoquista. Tirza Mazal, do conto 
de Agnon, vive inocentemente inadvertida das terríveis implicações dos fatos que 
relata e das opções que realiza.
O  romance  Meu  Michel  foi  exaustivamente  estudado  pela  crítica  israelense 
porque nele se encontram já as contradições que serão um leitmotiv da obra posterior 
de Amós Oz. Encontra-se ainda o forte pendor ideológico e político entretecido 
com a literatura distendida entre a teoria e a experiência.
Nele,  há  uma  aparente  oposição  entre,  de  um  lado,  a  sociedade  israelense 
representada como uma sociedade distorcida que transformou as relações humanas 
numa espécie de contrato de compra e venda, que converte o amor em  um jogo 
de poder e posse e as relações familiares em pura alienação, e, de outro lado, a 
mulher, que vive alienada nessa sociedade, refugia-se no mundo onírico, onde pode 
virtualmente se realizar com os heróis sonhados.
9. In Sch. I. Agnon, Contos de amor (Rifka Berezin: seleção e tradução). São Paulo: Perspectiva, 1996.

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Entretanto, uma análise mais detida da protagonista mostra que ela construiu 
seu mundo de fantasia de acordo com a escala de valores que rege o mundo “real”, 
e deixa-se conduzir segundo as normas sociais interiorizadas, que transparecem 
até mesmo em seus sonhos. O tema principal desses sonhos é o anseio por um 
amor absoluto e ideal. Observando, entretanto, a performance da protagonista na 
relação  com  as  demais  personagens,  nota-se  que  suas  declarações  de  amor  não 
se confirmam, antes se contradizem: ela fala de amor, mas pratica a dominação, 
e o amor aparece identificado, assim, com o poder, inclusive sua relação com os 
gêmeos árabes mostra-se desigual e dominadora.
Assim,  a  aparente  oposição  entre  sociedade  e  personagem  pode  ser  vista, 
em  verdade,  como  uma  construção  analógica  entre  duas  esferas  que  distorcem 
igualmente  valores e sentimentos. Acompanhando o curso da analogia,  as relações 
que a protagonista estabelece com os demais, tanto em sonho como em realidade, 
guardam um certo paralelismo com o contexto nacional.  Hana se revolta contra 
algumas normas sociais e contra os heróis socialmente aceitáveis da Palmach
10

guerreiros  fortes  que  dominam  territórios  do  mesmo  modo  que  dominam  as 
mulheres. A idéia de conquista que ela conscientemente repudia – e esse é um dos 
fortes motivos que a faz escolher Michel como marido – atua sobre ela mesma 
tanto em sonho como na prática cotidiana. O aspecto nacional desse paralelismo 
entre mundo privado e social aparece quando a crise pessoal de Hana coincide com 
a crise nacional da Guerra do Sinai (1956). Esses paralelos implicam uma nova 
distorsão: a inversão de um valor (amor para Hana, redenção messiânica e sonho de 
um Terceiro Templo para muitos que a rodeiam) em seu oposto (poder e conquista 
para ela, guerra, ódio e vingança para os outros).
Os paralelos entre as duas crises aparecem no texto no âmbito da linguagem. 
Usam-se as mesmas palavras em relação aos dois acontecimentos, e, do ponto de 
vista da trama, o povo de Israel volta a seu cenário histórico-nacional, enquanto 
Hana volta em sonho para sua infância. O mesmo se pode dizer com relação à ruptura 
entre a aborrecida (para ela) vida cotidiana da mulher (compra de apartamento, 
casamento, nascimento do filho, etc.) e seus gloriosos sonhos não só com relação 
aos gêmeos árabes, mas também com relação ao mundo ilustrado dos maskilim
11

que são para ela lutadores que se rebelaram em seu tempo contra a realidade.
Esses e outros paralelos são técnicas empregadas por Amós Oz para derrubar 
os  sonhos  megalômanos  nacionais  à  luz  de  certa  ironia. A  alienação  onírica  da 
protagonista seria parte do sonho distorcido de toda a sociedade.
10. Força de defesa instituída em 19/03/1941, na Palestina.
11. Os ilustrados, os judeus que aderem à Haskalá, o Iluminismo judaico.

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Em  A  Caixa  Preta
12
,  o  autor  conduz  com    perfeito  domínio  o  destino  das 
personagens e as motivações políticas da sociedade israelense, construindo as duas 
partes sincronicamente, como dobradiças em que o duplo movimento  agiliza a 
função.
O  romance  é  composto  de  correspondências:  51  cartas  e  56  telegramas  que 
as personagens trocam entre si. Trata-se, pois, de um romance epistolar, gênero 
que  desfrutou  de  enorme  prestígio  no  século  XVIII  —  Werther,  de  Goethe,  e 
Ligações Perigosas, de Laclos, são exemplos de romances epistolares. Nele, como 
numa peça de teatro, o narrador  se oculta em benefício de suas personagens que 
ganham o primeiro plano. A drástica redução da mediação narrativa dá ao romance 
epistolar uma temporalidade essencialmente dramática. Contrariamente à literatura 
memorialista, por exemplo, que costuma jogar com a distância entre o presente do 
narrador e o passado remoto da história, o romance epistolar tende a identificar 
os  dois  planos.  Os  missivistas  ficam  mergulhados  na  opacidade  do  presente  e 
desconhecem  qualquer  futuro,  pois  contam  a  história  ao  mesmo  tempo  em  que 
vivem  os  acontecimentos.  Nas  Reflexões  sobre  as  Cartas  Persas,  Montesquieu 
atribui  o  sucesso  do  romance  epistolar  ao  fato  de  ele  suprimir  as  distâncias  e 
mergulhar  o  leitor  nas  paixões  das  personagens,  fazendo-o  experimentar  diante 
desse tipo de romance uma tensão semelhante à do espectador teatral. É também 
como o espectador de teatro que o leitor tem de montar, a partir das cartas, a fábula 
do romance, seu enredo.
Mas por que teria Amós Oz  escolhido essa forma para este romance? A resposta 
que  privilegia  um  nível  interpretativo    é  a  que  indica  que  o  autor  quis  dar  voz 
a diferentes segmentos da sociedade israelense (romance polifônico), porque ao 
mesmo tempo em que as personagens se constroem na e através da escrita, elas 
compõem algum segmento social e político da vida social e política do país.
Em linhas gerais, o romance apresenta um embate ideológico, quando mostra a 
desestruturação de uma família ashkenazita
13
 bem estabelecida, que acaba acolhendo 
um membro da comunidade judaica oriental, o que acelera o sepultamento de uma 
era cujo tempo de glória e de superioridade acabou.
Michael Sommo, além de oriental, é de convicção religiosa e idéias de direita 
com  relação  ao  “Grande  Israel”,  e  vem,  no  romance,  substituir  e  desbancar  a 
figura todo-poderosa de outro protagonista, o intelectual bem-sucedido Alexander 
12. A Caixa Preta, op.cit.
13.  Ashkenazita:adjetivo  que  marca  a  origem  dos  judeus  de  países  europeus  setentrionais,  em  especial  da 
Alemanha (que em hebraico se diz Ashkenaz), mas também da Rússia e outros países da Europa oriental. 
Falante do ídish

Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz
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Guideon, que, além de tudo, é simpatizante da esquerda política israelense. Este 
serviu o exército e tornou-se um pensador de esquerda destacado, alcançou um 
reconhecimento  internacional,  porém  deslocou-se  para  o  exterior,  abandonando 
Israel nas mãos da direita, representada no texto por Michael Sommo.
A trama do romance se passa em 1976, antes, portanto, da virada política de 
1977,  quando  a  direita  ganhou  o  poder,  tomando-o  do  partido  trabalhista  que 
era apoiado pela elite ashkenazita. O romance, assim, anuncia um desfecho que 
acontecerá  nas  décadas  de  80  e  90,  quando  o  período  heróico  dos  sabras
14
  de 
origem européia começou a se esgotar, e os pioneiros que sonharam em criar uma 
sociedade laica e pluralista tiveram que enfrentar a frustração.
A caixa preta de um avião dá pistas para se  desvendar o motivo de um acidente. 
Mas o romance é uma cartola de mágico que dá a ver, na superfície, uma rede de 
relações conflitivas que atam uma família integrada por Alexander Guideon, um 
importante intelectual, Ilana, sua ex-mulher, Boaz, o filho de ambos, criado durante 
sete anos como bastardo, e o novo marido de Ilana, Michael Sommo. Sob essa 
trama corre outra subterrânea, representando os conflitos correspondentes em nível 
sociopolítico.
As relações entre Sommo e Alex são representativas das relações étnicas entre 
ashkenazitas e orientais, esquerda e direita em Israel. A esquerda mostra-se em 
baixa, e em seu lugar surge uma força nova, a força do judaísmo mediterrâneo, 
que acredita no “Grande Israel” e que está se preparando para substituir o Israel 
anterior.
A partir da primeira carta de Ilana a seu ex-marido Alex, entra em cena um 
jogo de paixões que cresce com o desenrolar do texto (marido e mulher, embora 
separados, são extremamente apaixonados um pelo outro) entremeado com relações 
de  poder,  que  vêm  marcadas  pela  circulação  do  dinheiro.  Paixão  e  dinheiro, 
entretanto, não caminham no mesmo fluxo. O dinheiro flui de Alex para Sommo, 
Boaz e para o advogado Zakheim, podendo tanto corromper como construir. Já 
as paixões exacerbadas que desencadearam a quebra dos laços familiares terão o 
fôlego necessário para reconstruí-los, embora deslocados para outro lugar e em 
outra condição, isto é, os protagonistas da paixão terão que se submeter ao dado da 
realidade (doença e morte)  e aceitar a mudança de sua posição.
De qualquer forma, a linguagem circula e carreia o dinheiro e a paixão. Assim, 
lentamente, Sommo, o humilde professor de francês, começa a transformar-se, ao 
perceber a possibilidade de começar a receber uma ajuda financeira do ex-marido 
de sua esposa. O dinheiro o corrompe, pois ele abandona sua carreira de professor e 
14. Sabras: são assim chamados os nascidos no Estado de Israel.

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usa o dinheiro de Alex para reformar sua casa, sua vida. Ingressa num movimento de 
direita nacionalista militante, e passa a dedicar-se à compra de terras nos territórios 
ocupados, planejando levar a família para viver no bairro judaico na cidade velha 
de Jerusalém. Fundamentalista, acredita num futuro novo inspirado no passado. 
Sua fala é formal e permeada de citações bíblicas que vão se tornando cada vez 
mais freqüentes na medida em que o romance evolui e sua adesão ao nacionalismo 
se acentua. Seu empenho é o de impor a posição que defende aos que o rodeiam. 
Assim,  Boaz  teria  que  se  educar  em  Kiriat Arba  e  Ilana,  teria  que  reeducar-se. 
Ambos, porém, escaparão da órbita de sua influência.
A transformação de Sommo se faz, segundo lhe parece,  em nome do sionismo. 
Comprar terras, casas em Hebron, reconstruir as antigas sinagogas, numa cidade 
que já fora a sede do reinado do rei Davi, são parâmetros ideológicos que têm na 
mira a reconstrução de um mapa antigo da terra de Sion. E impor a Halahá, a lei 
religiosa judaica, a todos os cidadãos de Israel, sem se importar com a concepção 
ideológica e religiosa de cada um, é  a forma que ele privilegia para  redimir o 
presente israelense e plantar a salvação futura, preparando a vinda do Messias.
Sommo  expressa  a  frustração  que  sente  por  não  fazer  parte  da  sociedade 
constitutiva da empreitada sionista, ele, um  novo imigrante, um imigrante oriental, 
de estatura menor que os judeus europeus, dá vazão a sua frustração na atividade 
política, opondo-se fortemente aos árabes.  Assimetrias intra-étnicas e interétnicas 
se cruzam, e cabe ao mais fraco a obrigação de respeitar a força e o poder de quem 
os tem em mãos.
Alex é seu antípoda tanto no aspecto físico, como na origem, no trabalho, na 
ideologia. Filho de um pioneiro imigrante da Europa oriental convulsionada pelo 
anti-semitismo, seu pai, movido pelo sonho sionista secular, vai para a Palestina e 
rompe os laços com a tradição e com o judaísmo normativo, para ajudar a construir 
uma nação moderna. Esse pai projeta para seu filho nascido na Palestina um futuro 
heróico, ele seria o sabra alto, destemido e forte, orgulhoso de seu país, o oposto 
do  judeu  diaspórico  oprimido.  Criado  para  sentir  ódio,  para  defender-se,  Alex 
tornou-se um comandante perdido e solitário e é no exército que conhece a que 
será sua mulher, Ilana. Um casamento complicado feito de jogos eróticos perigosos 
e o adultério da mulher separam o casal litigiosamente, deixando mãe e filho sem 
dinheiro, enquanto o pai amealhava uma fortuna. É essa fortuna que ele irá transferir 
durante o romance, num momento em que sua carreira de escritor e intelectual está 
no topo, mas sua saúde se vê prejudicada por um câncer irreversível.
É  curioso  observar  que  o  tema  da  pesquisa  de  Alex  é  o  fundamentalismo 
religioso, visto como uma bomba que implodirá a sociedade israelense e as nações 
que  o  albergam,  conforme  se  pode  ler  numa  crítica  a  seu  livro  estampada  na 

Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz
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imprensa mundial: “... a obra despeja uma pesada sombra sobre a psicopatologia 
de várias fés e ideologias desde a Idade Média até nossos dias” (p.75). Ou: “...seu 
livro expõe a fé como fonte de imoralidade” (p.76).
À beira do desespero, Ilana casa-se com Sommo que lhe oferece uma nova 
oportunidade de reconstrução da vida familiar. Casar-se com Ilana, ashkenazita 
alta e bonita, representou uma vitória para Sommo. Ele a salva da auto-destruição 
quando Alex a abandona, enquanto isso sua auto-imagem cresce.
No início, a mulher o admira, mas em seguida fica perplexa com a velocidade 
com a qual Sommo se deixa corromper pelo dinheiro de Alex. Ainda que o dinheiro 
seja utilizado para o que ele chama de “o bem da nação”.
No final, Ilana abandona-o para ir cuidar de Alex, prestes a morrer. Mas este ato 
é interpretado por Sommo como um castigo, pelo fato de ele, Michel Sommo,  ter 
quebrado uma norma social e ter casado com alguém acima de sua condição e de 
fora de sua comunidade étnica.                                                                                                                 
Ironicamente, o herdeiro material de Alex será Sommo, o fanático destruidor 
de um presente tido como corrompido, cujo objetivo é o de criar uma sociedade 
inspirada  no  passado  bíblico  glorioso,  segundo  a  ideologia  que  o  aproxima  do 
movimento nacionalista Gush Emunim e do partido  ultra-nacionalista Kach. No 
final do romance,  Sommo compõe a imagem estereotipada do judeu oriental.
E Alex, por sua vez,  sabe, no final de sua vida, que o dinheiro herdado de seu 
pai e que pertencera à geração dos pioneiros destina-se à compra de terras nos 
territórios além da linha verde, mas, assim mesmo, nomeia Sommo seu herdeiro. 
Há uma passividade e uma inoperância que talvez o autor coloque nos movimentos 
pacifistas  e  nos  movimentos  de  esquerda  que  silenciaram  diante  do  avanço 
nacionalista. Assim, Sommo transforma-se numa nova figura que não hesita em 
tomar  o  dinheiro  do  “opressor”  ashkenazita  e,  graças  a  ele,  transforma-se  num 
homem moderno, com poder de decisão no novo cenário político israelense.
Já Boaz, o filho de Alex e Ilana,  não tem preparo para, nem vontade de continuar 
a empreitada sionista, embora a certa altura do romance se diga sionista. Sonhador 
e  idealista,  sua  participação  no  romance  instaura  uma  quebra  entre  a  ideologia 
sionista e uma prática amorosa de se enraizar no território que fora desbravado 
pelos pioneiros, como é o caso de seu avô, sem nenhuma nostalgia do passado 
grandioso do Israel bíblico. Seu tempo é o presente, e seu propósito, o de redimir a 
terra, com o trabalho de suas próprias mãos. Que cada um faça algo de construtivo, 
este é o seu lema. Sua posição com relação aos árabes é a de que têm o direito de 
viver em sua terra, caso contrário, os judeus acabarão com os árabes e estes com 
os judeus, sobrando apenas escombros da Bíblia e do Alcorão, chacais e ruínas de 
um passado glorioso.

Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008
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Não  é  por  acaso  que  ele    estabelece  em  Zihron  Yacov,  cidade  fundada  no 
início da colonização judaica da Palestina na era moderna, longe do fanatismo de 
Jerusalém e do consumismo cosmopolita de Tel Aviv, uma comunidade ligada à terra 
e inspirada num estilo de vida primitivo, contrastando com o luxo e a modernidade 
perseguidos por Sommo, e ao alcance natural de seu pai, Alex. Em carta de Ilana a 
Boaz, ela reconhece e verbaliza: “Você é melhor que todos nós”; reconhecimento 
partilhado pelo pai: “Essa árvore está crescendo longe das maçãs podres”.
Também para Boaz reflui o dinheiro de Alex, mas ele, no caso, não corrompe 
porque não é usado como valor de troca, nem como mediação de poder. O jovem 
trata os que o cercam como iguais,  sua comunidade apresenta uma organização 
horizontal, e ninguém exerce autoridade sobre o outro. Cada um tem autonomia 
para fazer o que quer, no hora que quer, ligando-se todos pelo empenho comum de 
uma construção coletiva. 
É  essa  organização,  onde  há  lugar  para  todos,  até  mesmo  para  Sommo,  a 
matriz  que ditará a forma deste romance de Amós Oz.  Essa é a microcomunidade 
imaginada  como  modelo  ideal  da  nação:    concede    voz  a  todos,    a  todas  as 
representações de forças políticas de Israel, mesmo aquelas com as quais o autor 
não concorda. É sobre esse modelo que se estrutura o romance polifônico de Amós 
Oz. A partir dessa construção,  ele mostra a singularidade de uma comunidade que, 
com todos os defeitos, conseguiu moldar uma sociedade singular. Talvez Sommo 
e Boaz tenham que disputar algum dia a liderança do país, mas o romance, com 
certeza, torce pelo segundo.
Num romance epistolar, a caraterização das personagens se faz pela linguagem, 
por aquilo que elas dizem e como dizem.  O tom protocolar  e feito de citações 
religiosas  de  Sommo;  a  linguagem  pausada  e  pontuada  de  erros  de  quem  não 
freqüenta nem freqüentou a escola  de Boaz; a escrita  franca e um pouco kitsch 
de Ilana; o texto cortante, inteligente e irônico de Alex;  os relatórios “objetivos” 
e  pragmáticos  dos  advogados;  a  linguagem  sucinta  e  decidida  dos  telegramas,  
cada um dos discursos figura um ethos, aponta para uma direção e compõe uma 
“cara”.  É  a  diversidade  de  vozes  justapostas  que  remete  à  multiplicidade  de 
caracteres. E como a história vai-se tecendo na medida em que cada carta é escrita 
com a autoridade que lhe atribui o missivista, ela pode ser e é contraditada pelo 
destinatário, que desconstrói a história anterior para reconstruí-la de seu ponto de 
vista em novo patamar. 
A  história  passional  vivida  por  Ilana  e  Alex  é  construída  duplamente.  Os 
motivos  que  levaram  ao  casamento,  ao  adultério  da  mulher,  ao  desencontro  do 
casal, vão se montando e desmontando, qual areia movediça, pelo homem e pela 
mulher, deixando o leitor perplexo diante da  impossibilidade de  refazer a história 

Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz
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num percurso linear. A única certeza que fica é a de que se trata de uma história de 
amor e paixão nada banal, vivida por duas personagens complexas que, apesar dos 
impedimentos da vida, não se separam de fato, embora  se distanciem  e a estrutura 
familiar se desfaça.
Se é a pele que sanciona a integridade dos corpos  limitando-os como invólucro, 
ela  explicita uma dinâmica entre superfície e profundidade, ao aceitar e acompanhar, 
ao mesmo tempo, relevos e depressões. Assim também o corpo da linguagem, no 
caso deste romance, delimitado pelos múltiplos estilos, múltiplos emissores,  deixa-
se atravessar pela paixão, que traz a reboque a ideologia.
Essa construção não se deixa capturar em partes excludentes, isto é, a ideologia 
sem a paixão, a paixão sem a ideologia, o que é um trunfo em termos de  seu 
resultado final.
Buscando a estrutura multivocal, onde as vozes contracenam sem submeter-se 
ao comando de um único desígnio, o homem político, que é a contraface do escritor,  
também busca um olhar equânime em relação ao conflito  israelense-palestino.
“Israelenses  e  palestinos  vão  chegar  a  um  acordo  tristemente  pragmático: 
haverá um estado da Palestina ao lado do de Israel; sem lua-de-mel nem história 
de amor, mas viveremos como vizinhos civilizados. Não sei quando isso virá, mas 
posso prometer, em nome de israelenses e palestinos, que se a Europa demorou 
mais de mil anos para acabar com as guerras e criar a Comunidade Européia, nós 
o faremos mais depressa e derramaremos menos sangue. Tenham um pouco de 
paciência  e  abdiquem  da  atitude  de  condenação,  indignação,  ou  paternalismo... 
Não nos digam que somos terríveis. Tentem ajudar. Dêem às duas partes toda a 
empatia que puderem. Isso é o que faço em meu livro, não julgo quem era bom 
e quem era mau entre meu pai e minha mãe. Escrevo sobre os dois, com toda a 
empatia de que sou capaz.”
15
  
  
15. Cf. http://www.pazagora.org/detailartigocfm?/dArtigo=292

Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008
275
Bibliografia:
AGNON, Sch. I., Contos de amor (Rifka Berezin: seleção e tradução). São Paulo: 
Perspectiva, 1996.
BEREZIN, Rifka, (coord., seleção, orientação das trad.). O  Novo conto Israelense. 
São Paulo: Editora Símbolo, 1978.
OZ, Amós, Conhecer uma mulher (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia 
das Letras, 1992.
A Caixa Preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Não  diga  noite  (trad.  George  Schlesinger).  São  Paulo:  Compainha  das  Letras, 
1997.
Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Compainha 
das Letras, 1999.
O mesmo mar (trad. Milton Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 2001.
Meu Michel (trad. Rifka Berezin et alii). São Paulo: Summus, 1982.
Meu Michel (trad. Milton Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 2002.
De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 2005.
De repente nas profundezas do bosque (trad. Tova Sender). São Paulo: Compainha 
das Letras, 2007.
WALDMAN,  Berta,  Linhas  de  Força:  escritos  sobre  literatura  hebraica.  São 
Paulo: Associação Editorial Humanitas, 20-04.w

Título
Editoração Eletrônica
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Número de Páginas
Fotolito, impressão e acabamento
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Opus Print Editora
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