Revista de estudos orientais
Download 3.63 Kb. Pdf ko'rish
|
- Bu sahifa navigatsiya:
- Bibliografia
- Palavras-chave
3. Conclusão Depois da tentativa de fazer emergir a relação nutrida entre os árabe- muçulmanos e as drogas, um problema, que se desdobra em variadas questões, surge imediatamente. Por que substâncias usadas pela medicina, pela farmacopéia e por homens e mulheres que buscavam experiências prazerosas foram transformadas ou deformadas pelos interesses das sociedades, a ponto de serem amplamente condenadas na época moderna? As lojas de drogas vendiam um sem-número de ervas e derivados que eram, em grande parte, comprados pelas gentes molestadas por algum tipo de doença. Misturas eram feitas, novas descobertas também. Foi assim que se pôde discernir o caráter medicinal de tantas ervas, flores, frutos, extrações. Sanadas as necessidades primárias de combate aos males, os homens se deram a partilhar um novo tipo de experiência: o prazer advindo das substâncias já conhecidas. Buscava-se pelos “promotores de felicidade”, estes “despertadores de consciência cósmica”, que, para Huxley, haviam sido descobertos “antes da aurora da História” 33 . Os árabes compartilhavam dessas práticas na medida em que permitiram a circulação e o uso de diversos psicoativos. Inebriantia, phantastica e euphorica 34 , 33. HUXLEY, A. Moksha. p. 185. 34. Embora se utilize, aqui, o termo psicoativo para nomear substâncias distintas e responsáveis por variadas experiências, é preciso lembrar que há inúmeras outras classificações, como aquela do alemão Louis Lewin. No início do século XX, o farmacólogo classificou as substâncias que agem sobre o corpo e/ou a mente em Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... 258 inclusive, estiveram à venda nos mercados, foram utilizados como medicamentos, puseram-se ao alcance de quem acreditava no seu poder benéfico sobre o corpo. Califas, vizires, cadi e outros dignitários islâmicos toleraram o consumo dos psicoativos ou sentiram o poder de tais substâncias. Correntes místicas, como o sufismo, tiveram, entre seus adeptos, entusiastas do vinho. Sobre o inebriante, Hazrat Inayat Khan escreveu a seguinte poesia: “Tu derramaste vinho na minha taça vazia onde quer que nos encontrássemos,/ sobre colinas e vales, sobre os topos das altas montanhas,/ nas espessas florestas e nos desertos estéreis,/ sobre as praias do mar agitado e sobre as margens do rio tranqüilo;/ e lá, ergueu-se em meu coração a paixão não-terrena e a alegria celeste” 35 . A busca do místico se faz através da bebida: ele atinge uma alegria além das possibilidades mundanas. Outra substância capaz de induzir o crente a um estado de iluminação espiritual foi o haxixe. Embora a resina tenha sido vastamente difundida pela sociedade islâmica, a conduta ascética desses homens de classes inferiores foi repudiada pelos árabes. Também Muhammad teve sua experiência de êxtase. O “vôo noturno” do profeta levaria inúmeros sufis a buscar práticas de ligação com a divindade. Depois desses “vôos”, os místicos islâmicos carregaram a religião “com luz, amor e uma fragrância divina que não vinha deste mundo” contra “o legalismo sufocante que ameaçava comprimir o Islã” 36 . Quem poderá rechaçar a idéia de que a fragrância divina, que não fazia parte deste mundo, fosse evocada por tâmaras – frutas prediletas do profeta – transformadas em bebida inebriante ou que os “vôos noturnos” compartilhassem os mesmos indutores da experiência mística que aqueles usados pelos sufis? O Islã conheceu os sofrimentos do corpo, e engendrou formas de aliviar os males dos homens. Esteve atento à sexualidade humana, e teceu, portanto, uma relação profícua com o corpo. Em inúmeras passagens do Corão, é possível perceber referências recorrentes ao sêmen, ao sangue, ao deleite. Todos os homens e todas as mulheres têm direito igual ao prazer. Se foi assim com o sexo, por que não seria também com o uso de psicoativos? Afinal, significaria, em última análise, defender a própria satisfação corporal. cinco grupos: excitantia, euphorica, hypnotica, inebriantia e phantastica. Nesse sentido, álcool, haxixe e ópio corresponderiam, respectivamente, a inebriantia, phantastica e euphorica. 35. EICHEMBERG, N. R. (trad.). O coração do sufismo. p. 196. 36. ROGERSON, B. O profeta Maomé, uma biografia. p. 144. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 243-261 - 2008 259 Quando pensamos no haxixe e no ópio, não deparamos com o interdito – pelo menos durante o período clássico. O álcool, como sabemos, foi proibido, mas a lei, transgredida. Não se poderia, em algumas páginas, levantar as possíveis causas para o recrudescimento da interdição às drogas, na sociedade islâmica. Principalmente, se a tratássemos como um bloco homogêneo, que passou por processos idênticos de formação de identidade, constituição política, comportamento social. Pode-se pensar em algumas questões, que contribuíram para endossar a vertente proibicionista: à medida que houve a constituição dos Estados-Nação, com demarcação de fronteiras e organização política, revelou-se uma quase incapacidade de separar Estado da religião. O resultado são governos pautados no Corão, que utilizam um documento produzido ao longo do século VII d.C. como manual jurídico. Daí advêm práticas que não condizem com a realidade vivida, punições severas ou mesmo atrozes. São ações como estas que continuam a impelir as sociedades islâmicas para longe da “modernidade”. Modernidade tecnológica e científica, é bom que se diga. Afinal, o corpo – tanto no Ocidente quanto no Oriente – continua a pagar um alto preço por seus desejos. As drogas, outrora agentes de cura ou de uso pessoal, entre os muçulmanos, foram incorporadas ao discurso oficial em voga no mundo “civilizado”, que passou a rechaçar, proibir e punir duramente os que se arriscam a utilizá-las. A sociedade islâmica, outrora aberta e simpática aos desejos dos corpos, escondeu o sexo sob os cuidados do segredo, da decência e da modéstia. A reboque desse comportamento, homens e mulheres tornaram-se indecifráveis perante o proibido. Para Nietzsche, o homem islâmico mostrava-se como o sujeito do “não”, o reativo. Diante disso, cabe inteiramente a pergunta feita por Foucault: “o que alguém deve saber sobre si para que esteja disposto a renunciar a qualquer coisa?”. O corpo continua a ser um enigma. Bibliografia: AL-MAKHZOUMI, Al-Sayed H. I. H. As fontes do prazer. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994. ATTIE FILHO, M. Falsafa: a filosofia entre os árabes. Uma herança esquecida. São Paulo: Palas Athena, 2002. AVICENNE. Poème de la Médecine. Paris: Société d’Édition Les Belles Lettres, 1956. BALICK, M. J. E COX, P. A. Plants, people, and culture. The Science of Ethnobotany. New York: Scientific American Library, 1996. Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... 260 BAUDELAIRE, C. De Los Paraísos Artificiales. Traducción de Nydia Lamarque. 1ª edição. México: Editorial Aguilar, 1961. BENJAMIN, W. Haxixe. São Paulo: Brasiliense, s/d. BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo. Lisboa: Cosmos, 1970. CANDIDO, A. A crônica: o gênero, sua fixação e sua transformação no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 1992. CARNEIRO, H. Amores e sonhos da flora: afrodisíacos e alucinógenos na botânica e na farmácia. São Paulo: Xamã, 2002. _____________. Pequena Enciclopédia da História das drogas e bebidas. Rio de Janeiro: Campus, 2005. CHAOUACHI, K. Anthropologie d’un mode d’usage de drogues douces. Paris: L’Harmattan, 1997. ESCOHOTADO, A. Historia general de las drogas. 3 vol. Madrid: Alianza Editorial, 1998. FOUCAULT, M. “Tecnologias de si” In Verve, revista semestral do Nu-Sol. PUC/ SP. 2004. HITTI, P. K. Os árabes. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1948. HOURANI, A. B. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. HUXLEY, A. Moksha. Textos sobre psicodélicos e a experiência visionária 1931- 1963. Rio de Janeiro: Globo, 1983. KHAN, H. I. O coração do sufismo. Tradução de N. R. Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1999. Las Mil y Una Noches. Tomo I. Traducción: León-Ignacio. Madrid/Barcelona: Ediciones 29, 1985. Las Mil y Una Noches. Tomo II. Traducción: León-Ignacio. Madrid/Barcelona: Ediciones 29, 1985. LE GOFF, J. e TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Livro das Mil e Uma Noites. Vol. I. Ramo Sírio. Introdução, notas, apêndice e tradução de Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo: Globo, 2005. LO JACONO, C. Islamismo. História, preceitos, festividades, divisões. São Paulo: Globo, 2002. MAZAHÉRI, A. Le vie quotidienne des musulmans au moyen age Xe au XIIIe siècle. Paris: Hachette, 1951. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 243-261 - 2008 261 NAFZAUI, M. Os campos perfumados. Tradução Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1994. NEFZAUI, O. I. M. O jardim perfumado do xeque Nefzaui: manual erótico árabe. Tradução da versão clássica de Richard Burton. Rio de Janeiro: Record, 2002. O Alcorão. Tradução Mansur Challita. Rio de Janeiro: Associação Cultural Internacional Gibran, s/d. ORTIZ, F. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1991 O significado dos versículos do Alcorão Sagrado. Tradução Samir El-Hayek. São Paulo: MarsaM Editora Jornalística, 2001. RAGIP, H. S. M. “O Islam e as ciências médicas” In Revista Mundo da Saúde, Universidade São Camilo, nov.-dez. de 2000. ROBINSON, R. O grande livro da Cannabis. Guia completo do seu uso industrial, medicinal e ambiental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. ROGERSON, B. O profeta Maomé, uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2004. SABBAH, F.A. La Mujer en el Inconsciente Musulmán. Madrid: Ediciones del Oriente y del Mediterráneo, 1986. SAHLI, R. B. O jardim das carícias: conto beduíno. Tradução Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1993. SAVARIN, B. A fisiologia do gosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SIMÕES, C. Mª. O. [et al.]. (org.). Farmacognosia: da planta ao medicamento. Porto Alegre/Florianópolis: Ed. UFRGS/Ed. UFSC, 2000. Solaz del Espíritu en el Hachís y el vino y otros textos árabes sobre drogas. Introducción, traducción y notas de Indalecio Lozano. Granada: Universidade de Granada, 1998. Tradução do sentido do Nobre Alcorão para a língua portuguesa. Dr. Helmi Nasr. Liga Islâmica Mundial. 263 FACES E CONTRAFACES: ALgUNS ASPECTOS DA ObRA DE AmóS Oz 1 Berta Waldman* Resumo: Este ensaio alinhava o cruzamento de aspectos políticos na obra literária de Amós Oz. Questões antes reprimidas pela geração de escritores vinculada à fundação do Estado de Israel vêm à tona na literatura de Oz. Meu intuito foi ressaltar o lugar de destaque que essa literatura dedica à presença e à voz do “outro.” Palavras-chave: literatura, política, árabes, judeus, “nós”, “eles”. Abstract: In this essay the author cross-stiches political aspects of Amos Oz’ literary work. Issues previously repressed by the writers’ generation connected to the foundation of the State of Israel, emerge in Oz´ literature. The author’s aim is to highlight how this literature sticks out the presence and the voice of the “other”. Key words: literature, politics, Arabs, Jews, “we”, “them”. O autor da literatura israelense contemporânea mais traduzido para o português é Amós Oz 2 . E também o mais apreciado pelos leitores. Sua passagem por São Paulo apenas confirmou a simpatia e o carisma que cercam o escritor e sua obra, traduzida para cerca de trinta idiomas. Professor de literatura na Universidade Ben Gurion, Amós Oz vive em Arad, no deserto do Neguev, em Israel. Contrapondo-se às idéias feitas que perpetuam a discriminação, a intolerância, a opressão, o autor não escreve “em linha reta”; 1. Este trabalho retoma elementos de outro ensaio, “Literatura e política: alguns aspectos da obra de Amós Oz”, mas amplia o anterior e dá-lhe outra direção. Cf. Linhas de Força: Escritos sobre literatura hebraica. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004. * Professora Titular na Área de Língua e Literatura Hebraica do Departamento de Letras Orientais da FFLCH – USP. 2. As obras de Amós Oz traduzidas para o português são: Conhecer uma mulher (trad.Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras,1992. A Caixa Preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Não diga noite (trad.George Schlesinger) São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 1999. O mesmo mar (trad. Milton Lando) São Paulo: Companhia das Letras, 2001.: Meu Michel (trad. Rifka Berezin et. alii). São Paulo: Summus, 1982. (trad. Milton Lando) São Paulo: Companhia das Letras, 2002. De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz 264 para ele todas as coisas são plurais e multívocas. Sua obra autobiográfica De amor e trevas 3 é um exemplo disso. Multifacetada e móvel, um caleidoscópio de lembranças recuperadas e imaginadas, misto de referencialidade e subjetividade, a obra retrata não um sujeito, mas vários, ou um autor multiforme, que se move sem cessar entre a “verdade” e a ficção, entre o passado e o presente, entre aquele que conta e o que é contado, substituindo o ponto final pelo texto necessariamente incompleto e aberto. De amor e trevas retoma a vida de Amós Oz da infância numa Jerusalém sob domínio britânico à sua transformação em escritor. De Jerusalém passa a viver no kibutz 4 Hulda, onde permanece por muitos anos e ali adota seu pseudônimo literário. A casa em que cresceu, o peso do fracasso do pai e a ferida aberta da mãe, a obrigação de redimir a ambos transformando os fracassos deles em vitórias, os idiomas falados em Jerusalém e pelos pais e parentes, a personalidade complexa de cada um deles, as referências aos livros que leu e os que compunham a biblioteca dos pais, a mudança de rumo ocorrida a partir do suicídio da mãe, episódio que pontua o romance do começo ao fim, o nascimento de uma nação num mundo ainda banhado no sangue da Segunda Guerra Mundial, a multidão de refugiados, pioneiros, sobreviventes que a povoaram, os intelectuais mais próximos como o tio Yossef Klausner, o contato com o escritor Schai Agnon, os políticos e pais fundadores da nova nação, todos fluem diante dos olhos do leitor na construção de um grande painel histórico e humano. O romance termina com o suicídio da mãe de Amós Oz, aludido em diferentes partes, marcando o lugar de um aprendizado precoce a que o menino de doze anos se submete e a partir do qual esse menino terá que reinventar uma variedade de sentidos que justifiquem continuar vivendo. O núcleo irradiativo desse romance é a morte da mãe. Todo o relato se move em círculos ao redor dessa morte, modulando o foco em aproximações e distanciamentos de modo a capturar da história dos ascendentes do escritor à construção de um país, apresentados a partir de um ponto de vista. Quer dizer, é em torno de um nódulo subjetivo e afetivo que a memória pessoal e familiar dispara na construção dessa grande tela narrativa que é o romance. “Foi muito difícil para mim criar essa estrutura. Como fazer as modulações entre uma conversa com ben Gurion, as fantasias e histórias de minha mãe, a vida em Israel há 90 anos, a cultura do kibutz e minha vida atual em Arad/.../? Como 3. De amor e trevas, op. cit. 4. Kibutz (em port., comunidade): comunidade economicamente autônoma baseada no trabalho agrícola e agroindustrial, parte importante do projeto político-ideológico da fundação do Estado de Israel. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 265 orquestrar tudo isso? Foi um enorme problema musical. As pessoas me perguntam se foi muito difícil fazer uma confissão. Confessar não é nada ao lado de criar uma estrutura e a combinação artística capaz de harmonizar todas essas coisas.” 5 Pantera no porão 6 também pode ser lido como uma evocação autobiográfica. Narrado retrospectivamente pelo protagonista já adulto, décadas depois dos eventos apresentados, o romance focaliza Jerusalém, no verão de 1947, ainda sob o mandato britânico, um ano antes da criação do Estado de Israel. O protagonista de 12 anos por acaso faz amizade com um militar britânico tímido e bonachão, um admirador da tradição judaica, que conversa com o garoto num hebraico bíblico. Enquanto o menino pensa estar extraindo do inimigo importantes segredos militares, é acusado por seus amigos de traidor. Mas conversar com o invasor é traição? É traição enganar o inimigo por meio de uma falsa amizade? Essa amizade era falsa ou verdadeira? Décadas depois, o menino torna-se escritor e continua obcecado pelo sentido das palavras. Quem trai quem quando se aproxima do inimigo? O interesse pelo opositor inglês em 1947 será substituído pelo árabe, que marca presença nos textos literários de Amós Oz e também nos textos políticos. Numa prosa que equilibra o lirismo e a reflexão, a política e a metafísica, o escritor transfere para a esfera íntima aspectos da história israelense ressaltando o conflito com os palestinos, questão reprimida na geração dos escritores contemporâneos à formação do Estado. Fazer que idéias ou ideologias ganhem vida, esse vem sendo o propósito de Amós Oz, ficcionista e militante político da esquerda israelense, ligado ao movimento pacifista Shalom Ahshav (Paz Agora). A partir da década de 70, Oz assume uma atitude crítica apontando na imprensa escrita e televisiva sua posição a propósito dos rumos políticos do país. O homem político transparece na ficção de forma engenhosa, conforme veremos em alguns textos, principalmente em Meu Michel e, mais especificamente, em A Caixa Preta. Desde o início de sua carreira de escritor, é possível observar algumas chaves que podem ser usadas até hoje para interpretar a narrativa de Amós Oz. No conto “O nômade e a serpente” 7 e no romance Meu Michel 8 , por exemplo, a fábula não é o mais importante, mas serve para pôr em relevo o sentimento ambivalente 5. (http://www.pazagora.org/detailartigo cfm?/dArtigo+292) 6. Pantera no porão, op.cit. 7. Incluído na coletânea Nas Terras do Chacal, que reúne contos escritos entre 1962-1965. Publicada em Ramat Gan, pela Editora Massada, em 1965. Os contos foram reescritos pelo autor posteriormente e publicados pela Editora Am Oved, em 1976. Existe tradução do conto para o português, In: O Novo Conto Israelense (coord. seleção, orientação das trad. Rifka Berezin). S.P.: Ed.Símbolo, 1978. 8. Meu Michel , op. cit. Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz 266 de atração-repulsão que percorrerá a obra do autor. A atração de Gueula pelo repugnante nômade no conto “O nômade e a serpente”, ou a de Hana pelos gêmeos palestinos em Meu Michel servem ao autor para expressar traços profundos em perpétua luta. O mundo escuro e selvagem, os instintos eróticos e letais são ameaçadores mas atraem mais que a fachada da vida tranqüila e luminosa da sociedade bem constituída, que se apresenta como tranqüilizadora, mas menos atraente que o subsolo misterioso e sombrio representado por elementos hostis, levando as personagens a se debaterem entre esses dois mundos contraditórios, que não recebem, na pena do autor, qualificativos morais. É interessante observar a presença da minoria árabe nesses dois textos de Amós Oz, presença reprimida na primeira geração da literatura israelense. No conto, o autor apresenta o ponto de vista de uma maioria israelense distanciada da minoria árabe, embora haja alguns gestos indecisos no sentido de atribuir-lhe certa autonomia. Entretanto, o narrador confessa ser incapaz de entender os caminhos da minoria. Por outro lado, esse mesmo narrador apresenta-se como cúmplice do ato de vingança contra os nômades, apesar da incerteza em relação à identidade dos ladrões que estariam surrupiando objetos de menor monta no kibutz. A posição do narrador é incerta, oscilante, e, enquanto isso, maioria e minoria entram num jogo de medição de forças, cujas fronteiras aparecem ora relevadas, ora apagadas. Não se pode esquecer que o processo de construção do estado-nação israelense envolveu uma luta conduzida em termos de maioria e minoria nacionais. A presença de uma minoria nacional em um Estado não é apenas um problema quantitativo, mas tem implicações qualitativas nas esferas econômica e social. Sem dizer que um estado- nação baseia-se na homogeneização formadora de um “nós”, que exclui os que são “eles”. O conto de Oz problematiza o papel dialético da minoria na fundação do Estado, tensionando a comunidade kibutziana e os beduínos que foram “trazidos pela fome”, em sua busca de sustento. Indo além das noções de distinção sexual ou étnica, o retrato apresentado no conto representa a diversidade da minoria em termos de interesses concretos que podem chocar-se com aqueles da maioria. Nesse embate, há duas possibilidades: ou o Estado de Israel é um estado judaico e exerce um poder soberano que lhe permite ignorar e desconhecer o modo de vida e os motivos da minoria, ou é um estado de maioria judaica e, nesse sentido, deverá explorar de modo ativo as possibilidades que lhe advêm em virtude de sua situação de maioria. O conto aponta para uma ambigüidade em relação à decisão entre essas possibilidades. Por isso, o narrador titubeia, a polícia é ambivalente em relação à “ocupação” dos nômades, a personagem feminina mal-entende o que lhe acontece, os nômades têm um comportamento dúbio em relação aos israelenses. Nada é claro, porque há uma situação de fundo básica que não se resolve. Quando Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 267 Gueula, no final da narrativa, deixa o nômade e encontra-se sozinha, ela olha os aviões militares no céu, mas seu olhar, diz o texto, “é relutante”. As luzes cintilantes dos aviões e as batidas dos tambores árabes se justapõem e entrelaçam, tornando indistinto os símbolos da maioria e da minoria. Extasiada, Gueula não percebe que seu corpo está bloqueando um buraco onde há uma víbora, por isso, termina mordida e morre. A cobra não se deixa intimidar pelas luzes do avião, e mesmo os símbolos mais poderosos de soberania não a impedem de matar a moça que despertou sua raiva, uma raiva que, segundo o texto, “não é arbitrária”. Enquanto a víbora olha sem piscar, Gueula está de olhos fechados. Assim, o simbolismo fálico da serpente ligado ao nômade traz para o seu clímax uma história de cegueira política repleta de implicações. Em 1968, Amós Oz publica Meu Michel, onde deixa de lado o kibutz, que retomará posteriormente, para se deter na história de Hana, uma jovem casada, que vive uma existência dividida entre a realidade de um casamento cinzento e prosaico e um desejo de auto-realização através de situações oníricas onde os protagonistas são dois gêmeos palestinos, amigos de infância, que depois da guerra de 1948 ficaram do outro lado. O narrador personagem – a mesma Hana – conta a história de tal modo que se produz uma disparidade entre os acontecimentos tais como são contados pelo narrador e como são entendidos pelo leitor. Alguns críticos comparam a narradora/ protagonista com a do conto de Agnon - Bidmei Iameiha (“Na Flor da Idade”) 9 - e consideram ambas fideindignas como narradoras, mas há uma distinção entre ambas: Hana Goren vive num mundo de fantasias e desilusões marcadas por um isolamento infantil e por um desejo de violência masoquista. Tirza Mazal, do conto de Agnon, vive inocentemente inadvertida das terríveis implicações dos fatos que relata e das opções que realiza. O romance Meu Michel foi exaustivamente estudado pela crítica israelense porque nele se encontram já as contradições que serão um leitmotiv da obra posterior de Amós Oz. Encontra-se ainda o forte pendor ideológico e político entretecido com a literatura distendida entre a teoria e a experiência. Nele, há uma aparente oposição entre, de um lado, a sociedade israelense representada como uma sociedade distorcida que transformou as relações humanas numa espécie de contrato de compra e venda, que converte o amor em um jogo de poder e posse e as relações familiares em pura alienação, e, de outro lado, a mulher, que vive alienada nessa sociedade, refugia-se no mundo onírico, onde pode virtualmente se realizar com os heróis sonhados. 9. In Sch. I. Agnon, Contos de amor (Rifka Berezin: seleção e tradução). São Paulo: Perspectiva, 1996. Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz 268 Entretanto, uma análise mais detida da protagonista mostra que ela construiu seu mundo de fantasia de acordo com a escala de valores que rege o mundo “real”, e deixa-se conduzir segundo as normas sociais interiorizadas, que transparecem até mesmo em seus sonhos. O tema principal desses sonhos é o anseio por um amor absoluto e ideal. Observando, entretanto, a performance da protagonista na relação com as demais personagens, nota-se que suas declarações de amor não se confirmam, antes se contradizem: ela fala de amor, mas pratica a dominação, e o amor aparece identificado, assim, com o poder, inclusive sua relação com os gêmeos árabes mostra-se desigual e dominadora. Assim, a aparente oposição entre sociedade e personagem pode ser vista, em verdade, como uma construção analógica entre duas esferas que distorcem igualmente valores e sentimentos. Acompanhando o curso da analogia, as relações que a protagonista estabelece com os demais, tanto em sonho como em realidade, guardam um certo paralelismo com o contexto nacional. Hana se revolta contra algumas normas sociais e contra os heróis socialmente aceitáveis da Palmach 10 , guerreiros fortes que dominam territórios do mesmo modo que dominam as mulheres. A idéia de conquista que ela conscientemente repudia – e esse é um dos fortes motivos que a faz escolher Michel como marido – atua sobre ela mesma tanto em sonho como na prática cotidiana. O aspecto nacional desse paralelismo entre mundo privado e social aparece quando a crise pessoal de Hana coincide com a crise nacional da Guerra do Sinai (1956). Esses paralelos implicam uma nova distorsão: a inversão de um valor (amor para Hana, redenção messiânica e sonho de um Terceiro Templo para muitos que a rodeiam) em seu oposto (poder e conquista para ela, guerra, ódio e vingança para os outros). Os paralelos entre as duas crises aparecem no texto no âmbito da linguagem. Usam-se as mesmas palavras em relação aos dois acontecimentos, e, do ponto de vista da trama, o povo de Israel volta a seu cenário histórico-nacional, enquanto Hana volta em sonho para sua infância. O mesmo se pode dizer com relação à ruptura entre a aborrecida (para ela) vida cotidiana da mulher (compra de apartamento, casamento, nascimento do filho, etc.) e seus gloriosos sonhos não só com relação aos gêmeos árabes, mas também com relação ao mundo ilustrado dos maskilim 11 , que são para ela lutadores que se rebelaram em seu tempo contra a realidade. Esses e outros paralelos são técnicas empregadas por Amós Oz para derrubar os sonhos megalômanos nacionais à luz de certa ironia. A alienação onírica da protagonista seria parte do sonho distorcido de toda a sociedade. 10. Força de defesa instituída em 19/03/1941, na Palestina. 11. Os ilustrados, os judeus que aderem à Haskalá, o Iluminismo judaico. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 269 Em A Caixa Preta 12 , o autor conduz com perfeito domínio o destino das personagens e as motivações políticas da sociedade israelense, construindo as duas partes sincronicamente, como dobradiças em que o duplo movimento agiliza a função. O romance é composto de correspondências: 51 cartas e 56 telegramas que as personagens trocam entre si. Trata-se, pois, de um romance epistolar, gênero que desfrutou de enorme prestígio no século XVIII — Werther, de Goethe, e Ligações Perigosas, de Laclos, são exemplos de romances epistolares. Nele, como numa peça de teatro, o narrador se oculta em benefício de suas personagens que ganham o primeiro plano. A drástica redução da mediação narrativa dá ao romance epistolar uma temporalidade essencialmente dramática. Contrariamente à literatura memorialista, por exemplo, que costuma jogar com a distância entre o presente do narrador e o passado remoto da história, o romance epistolar tende a identificar os dois planos. Os missivistas ficam mergulhados na opacidade do presente e desconhecem qualquer futuro, pois contam a história ao mesmo tempo em que vivem os acontecimentos. Nas Reflexões sobre as Cartas Persas, Montesquieu atribui o sucesso do romance epistolar ao fato de ele suprimir as distâncias e mergulhar o leitor nas paixões das personagens, fazendo-o experimentar diante desse tipo de romance uma tensão semelhante à do espectador teatral. É também como o espectador de teatro que o leitor tem de montar, a partir das cartas, a fábula do romance, seu enredo. Mas por que teria Amós Oz escolhido essa forma para este romance? A resposta que privilegia um nível interpretativo é a que indica que o autor quis dar voz a diferentes segmentos da sociedade israelense (romance polifônico), porque ao mesmo tempo em que as personagens se constroem na e através da escrita, elas compõem algum segmento social e político da vida social e política do país. Em linhas gerais, o romance apresenta um embate ideológico, quando mostra a desestruturação de uma família ashkenazita 13 bem estabelecida, que acaba acolhendo um membro da comunidade judaica oriental, o que acelera o sepultamento de uma era cujo tempo de glória e de superioridade acabou. Michael Sommo, além de oriental, é de convicção religiosa e idéias de direita com relação ao “Grande Israel”, e vem, no romance, substituir e desbancar a figura todo-poderosa de outro protagonista, o intelectual bem-sucedido Alexander 12. A Caixa Preta, op.cit. 13. Ashkenazita:adjetivo que marca a origem dos judeus de países europeus setentrionais, em especial da Alemanha (que em hebraico se diz Ashkenaz), mas também da Rússia e outros países da Europa oriental. Falante do ídish. Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz 270 Guideon, que, além de tudo, é simpatizante da esquerda política israelense. Este serviu o exército e tornou-se um pensador de esquerda destacado, alcançou um reconhecimento internacional, porém deslocou-se para o exterior, abandonando Israel nas mãos da direita, representada no texto por Michael Sommo. A trama do romance se passa em 1976, antes, portanto, da virada política de 1977, quando a direita ganhou o poder, tomando-o do partido trabalhista que era apoiado pela elite ashkenazita. O romance, assim, anuncia um desfecho que acontecerá nas décadas de 80 e 90, quando o período heróico dos sabras 14 de origem européia começou a se esgotar, e os pioneiros que sonharam em criar uma sociedade laica e pluralista tiveram que enfrentar a frustração. A caixa preta de um avião dá pistas para se desvendar o motivo de um acidente. Mas o romance é uma cartola de mágico que dá a ver, na superfície, uma rede de relações conflitivas que atam uma família integrada por Alexander Guideon, um importante intelectual, Ilana, sua ex-mulher, Boaz, o filho de ambos, criado durante sete anos como bastardo, e o novo marido de Ilana, Michael Sommo. Sob essa trama corre outra subterrânea, representando os conflitos correspondentes em nível sociopolítico. As relações entre Sommo e Alex são representativas das relações étnicas entre ashkenazitas e orientais, esquerda e direita em Israel. A esquerda mostra-se em baixa, e em seu lugar surge uma força nova, a força do judaísmo mediterrâneo, que acredita no “Grande Israel” e que está se preparando para substituir o Israel anterior. A partir da primeira carta de Ilana a seu ex-marido Alex, entra em cena um jogo de paixões que cresce com o desenrolar do texto (marido e mulher, embora separados, são extremamente apaixonados um pelo outro) entremeado com relações de poder, que vêm marcadas pela circulação do dinheiro. Paixão e dinheiro, entretanto, não caminham no mesmo fluxo. O dinheiro flui de Alex para Sommo, Boaz e para o advogado Zakheim, podendo tanto corromper como construir. Já as paixões exacerbadas que desencadearam a quebra dos laços familiares terão o fôlego necessário para reconstruí-los, embora deslocados para outro lugar e em outra condição, isto é, os protagonistas da paixão terão que se submeter ao dado da realidade (doença e morte) e aceitar a mudança de sua posição. De qualquer forma, a linguagem circula e carreia o dinheiro e a paixão. Assim, lentamente, Sommo, o humilde professor de francês, começa a transformar-se, ao perceber a possibilidade de começar a receber uma ajuda financeira do ex-marido de sua esposa. O dinheiro o corrompe, pois ele abandona sua carreira de professor e 14. Sabras: são assim chamados os nascidos no Estado de Israel. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 271 usa o dinheiro de Alex para reformar sua casa, sua vida. Ingressa num movimento de direita nacionalista militante, e passa a dedicar-se à compra de terras nos territórios ocupados, planejando levar a família para viver no bairro judaico na cidade velha de Jerusalém. Fundamentalista, acredita num futuro novo inspirado no passado. Sua fala é formal e permeada de citações bíblicas que vão se tornando cada vez mais freqüentes na medida em que o romance evolui e sua adesão ao nacionalismo se acentua. Seu empenho é o de impor a posição que defende aos que o rodeiam. Assim, Boaz teria que se educar em Kiriat Arba e Ilana, teria que reeducar-se. Ambos, porém, escaparão da órbita de sua influência. A transformação de Sommo se faz, segundo lhe parece, em nome do sionismo. Comprar terras, casas em Hebron, reconstruir as antigas sinagogas, numa cidade que já fora a sede do reinado do rei Davi, são parâmetros ideológicos que têm na mira a reconstrução de um mapa antigo da terra de Sion. E impor a Halahá, a lei religiosa judaica, a todos os cidadãos de Israel, sem se importar com a concepção ideológica e religiosa de cada um, é a forma que ele privilegia para redimir o presente israelense e plantar a salvação futura, preparando a vinda do Messias. Sommo expressa a frustração que sente por não fazer parte da sociedade constitutiva da empreitada sionista, ele, um novo imigrante, um imigrante oriental, de estatura menor que os judeus europeus, dá vazão a sua frustração na atividade política, opondo-se fortemente aos árabes. Assimetrias intra-étnicas e interétnicas se cruzam, e cabe ao mais fraco a obrigação de respeitar a força e o poder de quem os tem em mãos. Alex é seu antípoda tanto no aspecto físico, como na origem, no trabalho, na ideologia. Filho de um pioneiro imigrante da Europa oriental convulsionada pelo anti-semitismo, seu pai, movido pelo sonho sionista secular, vai para a Palestina e rompe os laços com a tradição e com o judaísmo normativo, para ajudar a construir uma nação moderna. Esse pai projeta para seu filho nascido na Palestina um futuro heróico, ele seria o sabra alto, destemido e forte, orgulhoso de seu país, o oposto do judeu diaspórico oprimido. Criado para sentir ódio, para defender-se, Alex tornou-se um comandante perdido e solitário e é no exército que conhece a que será sua mulher, Ilana. Um casamento complicado feito de jogos eróticos perigosos e o adultério da mulher separam o casal litigiosamente, deixando mãe e filho sem dinheiro, enquanto o pai amealhava uma fortuna. É essa fortuna que ele irá transferir durante o romance, num momento em que sua carreira de escritor e intelectual está no topo, mas sua saúde se vê prejudicada por um câncer irreversível. É curioso observar que o tema da pesquisa de Alex é o fundamentalismo religioso, visto como uma bomba que implodirá a sociedade israelense e as nações que o albergam, conforme se pode ler numa crítica a seu livro estampada na Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz 272 imprensa mundial: “... a obra despeja uma pesada sombra sobre a psicopatologia de várias fés e ideologias desde a Idade Média até nossos dias” (p.75). Ou: “...seu livro expõe a fé como fonte de imoralidade” (p.76). À beira do desespero, Ilana casa-se com Sommo que lhe oferece uma nova oportunidade de reconstrução da vida familiar. Casar-se com Ilana, ashkenazita alta e bonita, representou uma vitória para Sommo. Ele a salva da auto-destruição quando Alex a abandona, enquanto isso sua auto-imagem cresce. No início, a mulher o admira, mas em seguida fica perplexa com a velocidade com a qual Sommo se deixa corromper pelo dinheiro de Alex. Ainda que o dinheiro seja utilizado para o que ele chama de “o bem da nação”. No final, Ilana abandona-o para ir cuidar de Alex, prestes a morrer. Mas este ato é interpretado por Sommo como um castigo, pelo fato de ele, Michel Sommo, ter quebrado uma norma social e ter casado com alguém acima de sua condição e de fora de sua comunidade étnica. Ironicamente, o herdeiro material de Alex será Sommo, o fanático destruidor de um presente tido como corrompido, cujo objetivo é o de criar uma sociedade inspirada no passado bíblico glorioso, segundo a ideologia que o aproxima do movimento nacionalista Gush Emunim e do partido ultra-nacionalista Kach. No final do romance, Sommo compõe a imagem estereotipada do judeu oriental. E Alex, por sua vez, sabe, no final de sua vida, que o dinheiro herdado de seu pai e que pertencera à geração dos pioneiros destina-se à compra de terras nos territórios além da linha verde, mas, assim mesmo, nomeia Sommo seu herdeiro. Há uma passividade e uma inoperância que talvez o autor coloque nos movimentos pacifistas e nos movimentos de esquerda que silenciaram diante do avanço nacionalista. Assim, Sommo transforma-se numa nova figura que não hesita em tomar o dinheiro do “opressor” ashkenazita e, graças a ele, transforma-se num homem moderno, com poder de decisão no novo cenário político israelense. Já Boaz, o filho de Alex e Ilana, não tem preparo para, nem vontade de continuar a empreitada sionista, embora a certa altura do romance se diga sionista. Sonhador e idealista, sua participação no romance instaura uma quebra entre a ideologia sionista e uma prática amorosa de se enraizar no território que fora desbravado pelos pioneiros, como é o caso de seu avô, sem nenhuma nostalgia do passado grandioso do Israel bíblico. Seu tempo é o presente, e seu propósito, o de redimir a terra, com o trabalho de suas próprias mãos. Que cada um faça algo de construtivo, este é o seu lema. Sua posição com relação aos árabes é a de que têm o direito de viver em sua terra, caso contrário, os judeus acabarão com os árabes e estes com os judeus, sobrando apenas escombros da Bíblia e do Alcorão, chacais e ruínas de um passado glorioso. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 273 Não é por acaso que ele estabelece em Zihron Yacov, cidade fundada no início da colonização judaica da Palestina na era moderna, longe do fanatismo de Jerusalém e do consumismo cosmopolita de Tel Aviv, uma comunidade ligada à terra e inspirada num estilo de vida primitivo, contrastando com o luxo e a modernidade perseguidos por Sommo, e ao alcance natural de seu pai, Alex. Em carta de Ilana a Boaz, ela reconhece e verbaliza: “Você é melhor que todos nós”; reconhecimento partilhado pelo pai: “Essa árvore está crescendo longe das maçãs podres”. Também para Boaz reflui o dinheiro de Alex, mas ele, no caso, não corrompe porque não é usado como valor de troca, nem como mediação de poder. O jovem trata os que o cercam como iguais, sua comunidade apresenta uma organização horizontal, e ninguém exerce autoridade sobre o outro. Cada um tem autonomia para fazer o que quer, no hora que quer, ligando-se todos pelo empenho comum de uma construção coletiva. É essa organização, onde há lugar para todos, até mesmo para Sommo, a matriz que ditará a forma deste romance de Amós Oz. Essa é a microcomunidade imaginada como modelo ideal da nação: concede voz a todos, a todas as representações de forças políticas de Israel, mesmo aquelas com as quais o autor não concorda. É sobre esse modelo que se estrutura o romance polifônico de Amós Oz. A partir dessa construção, ele mostra a singularidade de uma comunidade que, com todos os defeitos, conseguiu moldar uma sociedade singular. Talvez Sommo e Boaz tenham que disputar algum dia a liderança do país, mas o romance, com certeza, torce pelo segundo. Num romance epistolar, a caraterização das personagens se faz pela linguagem, por aquilo que elas dizem e como dizem. O tom protocolar e feito de citações religiosas de Sommo; a linguagem pausada e pontuada de erros de quem não freqüenta nem freqüentou a escola de Boaz; a escrita franca e um pouco kitsch de Ilana; o texto cortante, inteligente e irônico de Alex; os relatórios “objetivos” e pragmáticos dos advogados; a linguagem sucinta e decidida dos telegramas, cada um dos discursos figura um ethos, aponta para uma direção e compõe uma “cara”. É a diversidade de vozes justapostas que remete à multiplicidade de caracteres. E como a história vai-se tecendo na medida em que cada carta é escrita com a autoridade que lhe atribui o missivista, ela pode ser e é contraditada pelo destinatário, que desconstrói a história anterior para reconstruí-la de seu ponto de vista em novo patamar. A história passional vivida por Ilana e Alex é construída duplamente. Os motivos que levaram ao casamento, ao adultério da mulher, ao desencontro do casal, vão se montando e desmontando, qual areia movediça, pelo homem e pela mulher, deixando o leitor perplexo diante da impossibilidade de refazer a história Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz 274 num percurso linear. A única certeza que fica é a de que se trata de uma história de amor e paixão nada banal, vivida por duas personagens complexas que, apesar dos impedimentos da vida, não se separam de fato, embora se distanciem e a estrutura familiar se desfaça. Se é a pele que sanciona a integridade dos corpos limitando-os como invólucro, ela explicita uma dinâmica entre superfície e profundidade, ao aceitar e acompanhar, ao mesmo tempo, relevos e depressões. Assim também o corpo da linguagem, no caso deste romance, delimitado pelos múltiplos estilos, múltiplos emissores, deixa- se atravessar pela paixão, que traz a reboque a ideologia. Essa construção não se deixa capturar em partes excludentes, isto é, a ideologia sem a paixão, a paixão sem a ideologia, o que é um trunfo em termos de seu resultado final. Buscando a estrutura multivocal, onde as vozes contracenam sem submeter-se ao comando de um único desígnio, o homem político, que é a contraface do escritor, também busca um olhar equânime em relação ao conflito israelense-palestino. “Israelenses e palestinos vão chegar a um acordo tristemente pragmático: haverá um estado da Palestina ao lado do de Israel; sem lua-de-mel nem história de amor, mas viveremos como vizinhos civilizados. Não sei quando isso virá, mas posso prometer, em nome de israelenses e palestinos, que se a Europa demorou mais de mil anos para acabar com as guerras e criar a Comunidade Européia, nós o faremos mais depressa e derramaremos menos sangue. Tenham um pouco de paciência e abdiquem da atitude de condenação, indignação, ou paternalismo... Não nos digam que somos terríveis. Tentem ajudar. Dêem às duas partes toda a empatia que puderem. Isso é o que faço em meu livro, não julgo quem era bom e quem era mau entre meu pai e minha mãe. Escrevo sobre os dois, com toda a empatia de que sou capaz.” 15 15. Cf. http://www.pazagora.org/detailartigocfm?/dArtigo=292 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 275 Bibliografia: AGNON, Sch. I., Contos de amor (Rifka Berezin: seleção e tradução). São Paulo: Perspectiva, 1996. BEREZIN, Rifka, (coord., seleção, orientação das trad.). O Novo conto Israelense. São Paulo: Editora Símbolo, 1978. OZ, Amós, Conhecer uma mulher (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. A Caixa Preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Não diga noite (trad. George Schlesinger). São Paulo: Compainha das Letras, 1997. Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 1999. O mesmo mar (trad. Milton Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 2001. Meu Michel (trad. Rifka Berezin et alii). São Paulo: Summus, 1982. Meu Michel (trad. Milton Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 2002. De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 2005. De repente nas profundezas do bosque (trad. Tova Sender). São Paulo: Compainha das Letras, 2007. WALDMAN, Berta, Linhas de Força: escritos sobre literatura hebraica. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 20-04.w Título Editoração Eletrônica Formato Tipologia Papel de Miolo Papel de Capa Número de Páginas Fotolito, impressão e acabamento Revista de Estudos Orientais n. 6 Opus Print Editora 16 x 22 cm Times New Roman Pólen soft 80 g/m 2 Cartão Supremo 250 g/m 2 280 ???? ???? Download 3.63 Kb. Do'stlaringiz bilan baham: |
Ma'lumotlar bazasi mualliflik huquqi bilan himoyalangan ©fayllar.org 2025
ma'muriyatiga murojaat qiling
ma'muriyatiga murojaat qiling