Revista de estudos orientais


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Bibliografia:
DEZEM, R. Matizes do “amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no 
Brasil (1878-1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
GOMBRICH, E.H. Meditações sobre um cavalinho de pau e outros ensaios sobre 
teoria da arte. São Paulo: Edusp, 1999.
Revista da Semana – Edição semanal ilustrada do Jornal do Brazil (1903-1908)
Revista O Malho (1902-1908)
SALIBA,  Elias  T.  Raízes  do  Riso.  A  representação  humorística  na  história 
brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia 
das Letras, 2002.

Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 65-70 - 2008
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AS CIDADES, A FAUNA E A FLORA DO bRASIL NO 
TESTEmUNHO OCULAR DE Um VIAjANTE áRAbE
Paulo Daniel Farah*
Resumo:    O  imã  bagdali  ‘Abdurrahman  al-Baghdádi  viajou  ao  Brasil  em 
um navio do Império Otomano na segunda metade do século XIX.  Al-Baghdádi 
permaneceu  aproximadamente  três  anos  no  Rio  de  Janeiro,  na  Bahia  e  em 
Pernambuco. No relato que escreveu sobre a experiência, o imã descreve as cidades 
brasileiras, sua flora, sua fauna e sua gente. 
Palavras-chave: Brasil, Islam, Árabe, viagem, descrição.
Abstract: An  Iraqi  imam  traveled  to  Brazil  in  a  ship  that  belonged  to  the 
Ottoman Empire in the latter half of the 19th century. ‘Abdurrahman al-Baghdádi 
stayed about three years in Rio de Janeiro, Bahia and Pernambuco. In the book that 
Al-Baghdádi wrote about his experience, he describes Brazilian cities, its people, 
its flora and fauna. 
Keywords: Brazil, Islam, Arab, travel, description.
‘Abdurrahman  al-Baghdádi,  o  primeiro  viajante  muçulmano  de  que  se  tem 
registro a deixar um relato sobre sua visita ao Brasil do Oitocentos, tece em seus 
escritos uma descrição minuciosa das cidades do país, de sua fauna, sua flora e 
sua  gente,  pelo  prisma  de  um  líder  islâmico. Vindo  ao  Brasil  em  um  navio  do 
Império Otomano, em meados do século XIX, Al-Baghdádi foi identificado como 
autoridade religiosa por muçulmanos residentes no Rio de Janeiro, onde iniciou 
seu relato autobiográfico. 
À então capital do Império, “a mais grandiosa das cidades do Brasil”, reserva 
elogios:  “É  a  capital  do  reino  elevado:  o  clima  é  bom,  a  água  abundante,  as 
construções  maravilhosas  e  foi  moldada  com  base  em  premissas  geométricas. 
Seus jardins são prazenteiros e seus passeios, perfeitos. Encontra-se a 22 graus de 
latitude sul e 45 graus de longitude leste, com frações de ambos os lados. O calor é 
intenso e o lucro no comércio, imenso. A cidade é sólida e bem construída”
1
.
* Prof. Dr. da Área de Língua, Literatura e Cultura Árabe do DLO.
1. FARAH, P.D. (ed.) Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é Espantoso e Maravilhoso. Argel, Caracas, Rio 
de Janeiro: BNA, BNV e BNR, 2007, p. 62.

Paulo Daniel Farah - As cidades, a fauna e a flora do Brasil...
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Al-Baghdádi permaneceu no Rio de Janeiro, que abrigava o governo e o setor 
militar, durante aproximadamente um ano e meio, em um momento em que a cidade 
passava  por  transformações  na  infra-estrutura  e  em  que  praças  e  parques  eram 
reformulados  e  novas  construções  erguidas  em  ritmo  de  urbanização  acelerada. 
Pouco tempo após a visita do imã bagdali, em 1872, conforme o censo daquele 
ano indica, moravam na cidade 274.972 pessoas, das quais 48.939 escravizadas. 
Entre outros temas, o imã descreve o processo de despersonalização e recriação das 
identidades a que eram submetidos os escravos.
Ao explicar como os habitantes do Rio de Janeiro se alimentavam, diz que “seus 
moradores não conhecem o cultivo do trigo e da cevada, e não há entre eles ninguém 
que esteja bem informado sobre isso. Comem farinha 
2
, e ela é a companheira deles. 
Trata-se [a mandioca] de uma espécie de planta parecida com a faia. Cultivam-na 
na planície. Quando alcança o grau de amadurecimento correto, eles a trituram para 
transformá-la em farinha em pó. É barata, e tanto ricos quanto pobres a comem 
igualmente. Substitui o trigo porque contém uma substância amilácea e de digestão 
muito rápida. Eu parei de comer pão de farinha de trigo, ainda que exista neste 
país, mas [o trigo] é trazido de fora e não se cultiva nesta terra. A farinha não é 
servida como pão. Se for posta em um molho de carne quente, fica parecida com a 
aÆída
3
 e é comida como um caldo, com arroz e outros alimentos... O alimento da 
maioria das pessoas é a carne bovina. Eles não valorizam a carne de ovelha nem a 
de cabrito”
4
.
Al-Baghdádi  informa  que  a  parada  e  a  permanência  no  Rio  de  Janeiro  não 
haviam sido planejadas, mas fruto de uma seqüência de tempestades. O comandante 
não tomara providências no que diz respeito à questão financeira e precisou pegar 
dinheiro emprestado em um banco do Rio de Janeiro para os reparos no navio, 
para a alimentação e para outros gastos relacionados à viagem. O consulado inglês 
serviu de intermediário para essa transação.
O  imã  escreve  extensamente  sobre  o  Brasil.  Acerca  do  processo  de  sua 
ocupação, afirma que se trata de “um território que pertence à América do Sul. Foi 
conquistado pelos filhos de Portugal, que despenderam um grande esforço para 
erguer e embelezar suas construções e sua arquitetura. Depois disso, nomearam 
um dos filhos de seus reis para governar o país. Mas ele se apoderou [do governo 
2. O autor utiliza a transliteração em árabe da palavra farinha (ﻓﺎﺭﻴﻨﻪ).
3. Espécie de mingau feito de farinha. Come-se – sobretudo no café da manhã ou em épocas festivas – com 
azeite e mel (ou açúcar) ou com grão-de-bico, lentilha e fava, entre outros alimentos que normalmente são 
triturados para servir de acompanhamento à ‘aÆída.
4. FARAH, P.D. (ed.), op.cit., p. 63.

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do Brasil], opôs-se ao pai e tornou-se independente dele”
5
. E, à margem do texto, 
complementa: “Eu acredito que o motivo da denominação Brasil é que este é o 
nome  de  uma  árvore  da  qual  se  extrai  uma  tinta  vermelha  chamada  Brazuh  no 
idioma dos estrangeiros. Com ela, pinta-se a lã – e Deus sabe mais. A primeira 
vez em que essa região foi descoberta e passou a ser conhecida foi no ano de 1500 
da era cristã. Conta-se que, antes disso, o povo de Djín já a conhecia – e Deus, o 
Excelso, sabe mais”
6
.
O líder religioso também afirma que o país, “atravessado de oeste a leste pelo 
Rio Amazonas, o maior rio do mundo... que avança a água doce mar adentro por 
uma longa distância”
7
, possuía 40.000 militares, cerca de 85 vapores, navios de 
guerra e navios mercantes. 
Descrição da paisagem
Em seu relato, o imã descreve a paisagem, tema indissociável da experiência do 
viajante do século XIX, e as cidades brasileiras pelas quais passou em suas missões 
de cunho didático: o Rio de Janeiro, Salvador e Recife.
 São nítidos no texto a sensação da grandiosidade do universo e o encanto que a 
floresta virgem – e os seres que nela habitam – despertam em Al-Baghdádi. Em uma 
seção reservada à “floresta que se estende do Brasil até o Sul da América”, afirma 
que “nestes reinos há uma floresta famosa cujo interior não se sabe o que abriga 
por causa da água abundante, de suas densas árvores, de seus animais selvagens 
estranhos e de seus grandes perigos. Mesmo que um cavaleiro eficiente cavalgasse 
ao lado da floresta durante um mês, noite e dia, não alcançaria seu final nem sua 
magnitude. E o mesmo vale para sua amplitude, conforme relataram os habitantes 
dessa terra (...) Observa-se, naquela floresta, durante a noite e à distância, uma 
luz como [a de] tochas. Diz-se que é a luz do ouro e das pedras preciosas. E há 
predadores ferozes, da espécie do tigre e da pantera, e vários tipos de macacos 
pequenos e diversos animais selvagens e estranhos” 
8
. Sobre as riquezas materiais, 
elabora: “O Estado utiliza papel-moeda por causa da escassez de ouro e de prata. A 
princípio, tinham esses dois metais, mas se diz que eles se esgotaram. E [o Brasil] 
possui uma quantidade enorme de dívidas”
9

Al-Baghdádi  descreve  com  curiosidade  evidente  os  “povos  selvagens  de 
5. ibid, p. 95.
6. ibid.
7. ibid, p. 96.
8. ibid, p. 110
9. ibid, p. 80.

Paulo Daniel Farah - As cidades, a fauna e a flora do Brasil...
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humanos  na  América”  e  oferece  uma  explicação  que  revela  o  imaginário  em 
torno da representação dos indígenas, o qual se compõe de  seres maravilhosos 
cuja referência remonta a tempos longínquos: “Nestas terras, há grupos de seres 
humanos que descendem dos habitantes deste país que não foram civilizados nem 
subjugados. Os reis dos Estados não puderam comandar uma guerra contra eles 
porque não conseguem se defender. Eles vivem no interior da floresta e no campo 
aberto.  Mantêm-se  à  sombra  das  árvores,  como  [se  fossem]  abetardas,  com  os 
corpos  desnudos,  de  constituição  grande  e  pés  exageradamente  grossos,  que  se 
distanciam da proporção de seus corpos. Contaram-me que, quando chove, abaixam 
a cabeça até o chão, erguem os pés
10
  e os utilizam como um guarda-chuva para se 
protegerem. Fazem [os pés] o que ele [o guarda-chuva] faz e evitam que seu dono 
se molhe (...) As mulheres possuem extrema beleza, seus cabelos vão até abaixo do 
joelho e prevalece neles um tom prateado e dourado”
11
 .
A  respeito  de  Salvador  da  Bahia  (cuja  pronúncia  descreve  minuciosamente: 
“[pronuncia-se]  com  duplicação  do  ‘yá’  vocalizado  em  ‘a’  no  paradigma  de 
arabiyya
12
”), afirma que “é pequena em retidão, grande em extensão
13
 e intensa 
no calorão
14
 . Encontra-se a 17 graus e algumas frações de latitude sul e 38 graus e 
algumas frações de longitude oeste. Sua população em geral come farinha”
15
.
Nessa cidade, Al-Baghdádi viu uma grande gaiola de prata repleta de pássaros 
de diversas espécies. O imã ganhou um papagaio que o impressionou ao imitar 
a  convocação  à  oração.  “Com  freqüência,  ouvia  minha  convocação  à  oração  e 
logo a decorou pela observação, pois era rápido na compreensão e na imitação. 
Mas não respondia sobre o passado com exatidão”
16
 , informa. Os papagaios eram 
exportados do Brasil para muitos países, de acordo com a explicação do imã.
10. A  referência  aos  seres  de  pés  grandes  já  aparece  em  Plínio,  o Antigo  (23-79  d.C.),  História  Natural
livro VII. Diversos autores dos séculos XVI, XVII e XVIII mencionam seres maravilhosos como esses. Ver 
ALDROVANDI, Ulysses, Monstrorum historiae, cum paralipomenis historiæ omnium animalium, Bononiæ, 
1642;  BARTHOLIN,  Thomas,  Historiarum  anatomicarum  rariorum  centuriae  I  et  II,  Hafniae,  1654-61; 
NIEREMBERG, Juan Eusébio, Historia naturæ, maxime peregrinæ, libris XVI distincta, Antuerpiæ, 1635; 
ROBINET, Jean-Baptiste, Considérations philosophiques de la gradation naturelle des formes de l’être, ou les 
essais de la nature qui apprend à faire l’homme, Paris, 1768.
11. FARAH, P.D. (ed.), op. cit., p. 121
12. Al-Baghdádi translitera a palavra Bahia em árabe (ﺍﺒﺎﺌﻴﺔ) com o uso de uma hamza (ﺀ) e a indicação de uma 
ºadda (ﹽ) e da vocalização em fat®a (ﹽ). Ademais, ao informar ao leitor que o paradigma para a pronúncia é 
a palavra ‘arabiyya (ﻋﺭﺒﻴﻪ), indica a tônica do topônimo.
13. Há um trocadilho entre birr (benevolência, fidelidade, bem-fazer, retidão) e barr (terra, terra firme). Em 
árabe, a grafia dessas palavras é idêntica, pois Al-Baghdádi não registra os diacríticos.
14. A frase se completa com a rima entre barr (terra) e ®arr (calor).
15. FARAH, P.D. (ed.), op.cit., p. 84.
16.  ibid, p. 85.

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Outro  animal  que  despertou  sua  atenção  foi  a  baleia,  cuja  pesca,  bastante 
rentável, observou em um navio a vapor. “Nela [na baía de Todos os Santos, a 
maior  baía  do  Brasil],  pesca-se  um  grande  peixe,  que  é  chamado  entre  eles  de 
‘baleia’ – [pronuncia-se] no paradigma de máhiyya com duplicação do ‘
17
. A 
grande [baleia] é vendida por cerca de mil libras e por menos que isso se vende a 
pequena. Quando uma foi pescada, eu subi no vapor e fui até lá para observá-la. Vi 
um animal espantoso cuja cabeça tinha a metade de seu corpo aproximadamente... 
É  extremamente  forte  ao  defender-se,  sobretudo  caso  sua  fêmea  seja  pescada 
primeiro. Em tal caso, pode destroçar o barco, sem desistir, até salvá-la.
Retira-se do cérebro desse animal uma quantidade de quarenta barris de óleo, e 
de alguns se extraem mais, como eu mesmo observei. E todos aqueles que pescam 
recebem remuneração [fixa] dos comerciantes. E na pesca fazem uso de estratégias 
que deslumbram os pensamentos”
18
, relata.
Comparação entre as frutas locais e as árabes
O  imã  bagdali  fala  da  grande  variedade  de  frutas  que  encontra  no  Brasil  e 
se impressiona com seu aspecto, sabor e diversidade. Ele afirma que há no país 
cinqüenta variedades de frutas inexistentes no Oriente, “à exceção de uvas, romãs e 
cocos, que são extremamente comuns e baratos”. Ao descrever as frutas brasileiras, 
procura compará-las à noz, à romã, à tâmara e à uva, entre outras. 
Em uma provável referência à jaqueira (Artocarpus heterophylla), diz: “Neste 
país  há  uma  árvore  do  tamanho  da  grande  nogueira;  ou  melhor,  é  ainda  maior. 
Possui frutos maiores do que a abóbora, pendurados no tronco e nos grossos galhos 
da árvore. A parte externa assemelha-se à pele de um crocodilo e seu interior, a 
olho, tem o aspecto de uma romã, embora a semente seja como uma tâmara, e no 
interior de cada semente há um núcleo semelhante [à semente]. Seu sabor se parece 
com um doce feito de farinha e mel”
19
.
Em seguida, afirma que no Brasil “há um fruto que se assemelha a um marmelo 
na cor e no tamanho. Nada nele é comestível; é como uma esponja cheia de água. 
Tem uma única semente que a separa dos galhos da árvore. Naquela água, prevalece 
a acidez, então a adoçam com açúcar. Assim, ela causa na boca o mesmo efeito que 
a essência de menta, mas é mais gelada por dentro e mais benéfica”
20
. O autor 
parece descrever o caju, fruto do cajueiro (Anacardium occidentale).
17. Al-Baghdádi translitera a palavra “baleia” em árabe (ﺒﺎﻠﻴﻪ) e indica a ocorrência de uma ºadda (ﹽ) sobre o 
” para facilitar a pronúncia.
18. FARAH, P.D. (ed.), op.cit., p. 85.
19. ibid, p. 97.
20. ibid, p. 97.

Paulo Daniel Farah - As cidades, a fauna e a flora do Brasil...
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Nessa  seção  reservada  às  frutas,  afirma  ademais:  “O  que  se  relatou  sobre  a 
origem de uma árvore como um grão semeado no cérebro de um ser humano creio 
tratar-se de mitos desses povos. E Deus, o Excelso, sabe mais”
21
.
Ao ver peles de cobra à venda e transmitir as histórias que ouviu acerca da sucuri, 
Al-Baghdádi exalta o Criador (“Sublime é o Criador, que exalta o que Ele quer e 
o que Ele escolhe, isento, em suas ações, de tolice e artificialidade”). A respeito 
das  sucuris  relata  que  “engolem  um  grande  touro  e  (...)  quando  elas  enchem  o 
estômago de alimento, adormecem e ficam como uma grande montanha”. Embora 
a maioria dos cientistas considere fruto da fantasia popular a informação de que tais 
cobras possam comer um boi, de fato elas se alimentam de animais como capivaras, 
jacarés e veados. Ademais, antes da presença humana intensa nas regiões de seu 
hábitat, tais cobras poderiam ter vida mais longa e até se desenvolver mais. As 
sucuris  costumam  medir  aproximadamente  8  metros,  mas  já  foram  encontradas 
espécies com até 11 metros e mais de 400 kg.
A terceira cidade visitada por Al-Baghdádi, Recife, cativou sua atenção pela 
“inclinação para os quadrados mágicos, a geomancia, a numerologia e o sentido 
místico das letras”, pelo calor intenso e pela industrialização. “Esta cidade é mais 
quente que a primeira e fica a oito graus da linha do Equador. Se o Sol brilhasse 
continuamente,  queimaria  os  habitantes,  mas,  devido  à  sabedoria  do  Uno,  do 
Benfeitor, sempre chove (...) Há nesta cidade uma ponte
22
 de ferro sobre uma baía 
ampla; seu comprimento é de cerca de uma milha e sua largura, de quinze braças. E 
é um prodígio para a contemplação. Os moradores em sua totalidade não exercem 
nenhum  trabalho  durante  o  dia.  E  os  que  executam  os  serviços  são  os  negros 
porque têm uma capacidade extraordinária de suportar o calor intenso, ao contrário 
dos brancos. Todos os habitantes são grandes comerciantes, possuem fábricas e 
têm grandes conhecimentos sobre as indústrias. Nesta cidade, há diversos fortes, 
cidadelas e construções fortificadas”
23
.
O imã passou seu terceiro Ramadã em Pernambuco (o primeiro foi no Rio de 
Janeiro, onde também presenciou a Páscoa, e o segundo, na Bahia) antes de iniciar 
a viagem de retorno rumo a Damasco e, posteriormente, a Istambul, seu destino 
final.
21. ibid, p. 98.
22.  Referência  provável  à  Ponte  Santa  Isabel,  situada  sobre  o  rio  Capibaribe.  Inaugurada  em  1863,  foi 
idealizada pelo arquiteto francês Louis Léger Vauthier e construída pelo engenheiro inglês William Martineau. 
Trata-se da primeira ponte de ferro de Recife.
23. FARAH, P.D. (ed.), op.cit., p. 113. 

71
A “FóRmULA DO HORROR à RUSSA” 
NA bELLE éPOqUE bRASILEIRA
Bruno Barretto Gomide*
Resumo: Quando leitores de todas as partes do mundo descobriram a literatura 
russa  em  fins  do  século  dezenove,  freqüentemente  associaram-na  a  noções  de 
contraste e de excesso. Este trabalho apresenta brevemente alguns textos (narrativas 
pseudo-russas, fantasias literárias, ensaios) publicados no Brasil do fim de século e 
da belle époque e marcados pela tonalidade patética.
Palavras-chave:  Literatura  russa,  literatura  comparada,  Dostoiévski,  belle 
époque, melodrama.
Abstract: When readers all over the world discovered Russian literature in the 
end of the Nineteenth Century, they frequently linked it with notions of contrast 
and  excess. This  article  briefly  discusses  some  texts  (pseudo-russian  narratives, 
literary phantasies, essays) published in fin-de-siècle and belle époque Brazil and 
marked by such pathetic tonality.  
Keywords:  Russian  literature,  comparative  literature,  Dostoevsky,  belle 
époque, melodrama.
-  1  -
Do Japão ao Uruguai, passando pelos centros decisórios do sistema literário 
internacional, a grande novidade de meados da década de 1880 foi a descoberta 
em bloco dos romancistas russos. O boom do romance russo a partir daqueles anos 
foi o primeiro caso de atribuição de um sinal positivo a uma literatura vinda da 
periferia cultural européia: graças a estratégias editoriais pujantes e a um esforço 
crítico extremamente bem- sucedido, leitores, críticos e ficcionistas mundo afora 
logo  viram  naqueles  artistas,  vindos  de  paragens  tradicionalmente  consideradas 
infensas às coisas do espírito, formas de ruptura na literatura e novas modalidades 
de junção entre moral e estética
1
.  
* Professor Doutor na Área de Língua e Literatura Russa do Departamento de Letras Orientais da FFLCH 
– USP.
1. Um panorama desse boom pode ser encontrado no segundo capítulo de GOMIDE, Bruno. Da Estepe à 
caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), 2004.

Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”...
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Essa  grande  novidade  literária,  que  gerou  respostas  das  mais  criativas  e 
radicais na crítica e na ficção, veio acompanhada de lugares-comuns que, em parte, 
foram  responsáveis  pelo  êxito  social  daquela  “nova”  literatura  e  pela  correlata 
transformação  da  Rússia  em  um  cenário  simbolicamente  válido  nas  discussões 
sobre  arte  e  cultura  finisseculares.  Em  especial,  ganhou  corpo  a  idéia  de  uma 
alma russa, ou de certos traços nacionais estáveis, creditáveis à mesologia ou a 
fatores psicológicos, traços obrigatoriamente associados ao excesso e a extremos. 
São caracterizações que se encontram em alguma medida na tradição intelectual 
russa, mas que ganharam força de lei em certas camadas da recepção ocidental, 
e  associaram  a  Rússia,  seus  escritores,  cada  texto  que  estes  produziram,  a  uma 
espécie de exótico lugar da desmedida e da não-civilização, para o bem ou para 
o mal. Profundidades insondáveis e arroubos místicos: nessa acepção, o pathos 
deslizava  com  freqüência  para  o  patético  mais  ardente,  envolvendo  a  literatura 
russa em significados próximos ao êxtase religioso.
Olhando em retrospecto, Mário de Andrade abespinhou-se com o intermediário 
francês através do qual o romance russo se difundira nas últimas décadas do século 
XIX, e quis resgatar a energia primitiva existente na literatura russa, comparável, 
a  seu  ver,  com  certas  potencialidades  da  cultura  brasileira.  Considerava  que  o 
“gosto  absorvente  pela  Rússia”  de  Paul  Morand  era  sintoma  de  decadência,  de 
cansaço e da fadiga da França em seu habitual papel civilizador.
2
 No entender de 
Mário de Andrade existe um núcleo dostoievskiano que evidentemente é produtivo 
para as discussões literárias, fundamental, até, para as direções da arte moderna, 
mas que tem que ser permanentemente escoimado de lugares-comuns. Tendo em 
mente o surrealismo, Mário afirma: “Os franceses estão fazendo do subconsciente 
o  que  fizeram  da  psicologia  de  Dostoiewsky  quando  começaram  a  usar  uma 
fórmula do horror à russa, outra do abismo psicológico, outra da simultaneidade 
dos  sentimentos  contraditórios.”
3
  O  brasileiro  faria  considerações  similares  em 
outras duas ocasiões. Em 1935, lamentava a “moda Dostoievski” e a “moda russa” 
postas em circulação pela França.
4
 Na segunda edição de Compêndio de história 
da música (1933), aludiu à “moda russa que ridiculamente tomou o mundo desde 
a  última  década  do  século  passado”,  apêndice  indesejável  da  difusão  do  gênio 
musical de Mússorgski e da “escola russa”. O interessante é que a primeira edição 
do compêndio de Mário, publicado quatro anos antes, trazia a mesma passagem, 
porém sem o “ridiculamente”. Este foi uma das adições feitas na revisão da edição 
2. ANDRADE, Mário de, resenha do livro “L’Europe galante”, de Paul Morand, ago. 1925.
3. ANDRADE, Mário de, resenha da revista “Estética n. 3”, ago. 1925.
4. ANDRADE, Mário de, “Decadência da influência francesa no Brasil” (1935), 1993.

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posterior.
5
  Na virada da década de vinte para a de trinta, cresceu a impaciência do 
escritor com o tributo que Paris exigia da cultura russa. 
-  2  -
Os paroxismos do que se considerava fatidicamente a “alma russa”, envolvida 
em mistérios estetizados, foram facilmente adaptados pelas tendências culturais 
do fim de século e da belle époque. Assim o comentarista “Fantasio”, da Cigarra
anunciava a presença, no Rio de Janeiro, de um telepata de nome russo, “(...) cuja 
terminação em off já traz em si um grande mistério, como tudo quanto é russo”.
6
  E o 
texto informativo de Leitura para todos sobre o lançamento de uma edição francesa 
das Notas do subsolo proclamava que os leitores certamente se assustariam com os 
“contrastes impressionadores de ferocidade e compaixão” encontrados na referida 
obra.
7
 
Feita a transformação da Rússia e de sua literatura em topos vitalista ou decadente, 
literatos dos primeiros anos do século vinte prodigalizaram uma série interminável 
de variações sobre o tema. Veja-se esta extensa citação do quintessencial polígrafo 
Tomás Lopes:
Antes da guerra com o Japão, a Rússia tinha um raro encanto aos olhos de uma geração 
nova, dominada pelo Evangelho de Tolstoi, comovida pelo gênio de Dostoiewsky, embalada 
pelas doces lendas de Pouckine, de Tourgueneff, de Gogol, de Kropotkine, de Gorky, afastada 
do modo de sentir da Raça Latina no Brasil pelo muito que lia, que pensava, que sonhava 
nas literaturas do Norte da Europa e nas filosofias exóticas. E havia também a paixão do 
desconhecido: Moscou, por exemplo, era uma cidade verdadeiramente santa; S. Petersburgo 
um hino ao poder maravilhoso do Imperador, e ao mesmo tempo uma gracilidade da neve 
e das formas brancas. Do Rio de Janeiro ninguém sabia ou queria saber. Pouco importava 
que o Pão de Açúcar desabasse e se afogasse; o essencial era que as Ilhas do Neva (que nem 
um de nós conhecia) continuassem a ser um ponto elegante no inverno. Lembro-me mesmo 
que uma vez encontrei o Paulo Barreto (nesse tempo ainda não era o brilhante João do Rio) 
muito nervoso por ter lido numa revista mal informada a possível destruição dos jardins de 
Peterhoff. Pouco antes tinha caído, vencido por um machado ignaro, e lembrado apenas 
pelos Cronistas o Baobá gigantesco da Praça da Glória.
8
 
5. ANDRADE, Mário de, Compêndio de história da música, 1933, 2a ed., pp. 144 e 145; ANDRADE, Mário
6. FANTASIO (pseud. Olavo Bilac). “Crônica”, 4 jul. 1895.
7. “Livros Novos”. Leitura Para Todos, abr. 1909. Trata-se provavelmente da edição Le sous-sol. Roman suivi 
de deux nouvelles inédites. Paris, Fasquelle, 1909. Tradução de J.-W. Bienstock.
8. LOPES, Tomás. Histórias da vida e da morte, 1907, pp. I-II.

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O comentário sobre a deliqüescência nevrótica gerada em torno da cultura russa 
não  impediu  o  autor  de  enfileirar,  na  seqüência  do  mesmo  livro,  alguns  contos 
(Histórias  da  vida  e  da  morte,  comentados  adiante)  que  são  desenvolvimentos 
da “gracilidade da neve e das formas brancas”. Do mesmo modo, a condessa de 
Tarnowska, evocada por Gilberto Amado, já está devidamente codificada na chave 
finissecular  das  “belas  damas  sem  misericórdia”,  de  psicologia  inescrutável  e 
capazes de atos extremados: 
Há  individualistas  e  socialistas,  cristãos  e  ateus,  divididos  nas  suas  doutrinas,  mas 
aproximados por essa singularidade: todos detestam a mulher. De Tolstoi a Dostoiewski 
não há deparar exceções. Não só na Rússia, mas nos outros países setentrionais o mesmo 
sentimento domina entre romancistas e dramaturgos. Todos encarnam na mulher a origem 
do  mal;  dão-lhe  instintos  de  fera,  insensibilidades  mórbidas,  extravagâncias  grotescas 
(...) Que sedução não será a desses músculos ágeis de cobra onde a energia fagulha; que 
maravilha a desses olhos sinistros de opala fria; desses gestos ante os quais a vontade dos 
homens abdica como diante de uma ordem divina! 
9
 
Em tempos de amor ambíguo, eis o romance russo conforme apresentado por 
Mario Praz: Nastássias Filípovnas, filhas dos caminhos ocultos de Poe e Baudelaire 
e netas do Marquês de Sade.
10
  
Enquetes galantes também eram locais adequados para a inserção de feixes da 
literatura russa. Entre 1916 e 1917 a revista Seleta fez uma série de “reportagens 
confidenciais”  com  senhoras  e  senhoritas  da  sociedade  fluminense.  O  quesito 
“escritores prediletos” (havia também flor, cor, principal defeito, traço caraterístico 
do caráter, sonho de felicidade, etc.) traz várias menções a Tolstói. Laura Correa 
Hasslocher, uma das entrevistadas, não cita nenhum romancista russo. Entretanto, 
à  pergunta  “a  minha  divisa”,  responde  solenemente:  “Nitchevo!”  –  “nada”,  em 
russo.
11
  Divisa  sem  dúvida  tributária  do  “niilismo”,  construto  filosófico-político 
atribuído  aos  russos  desde  as  agitações  sociais  amplamente  acompanhadas  pela 
imprensa ocidental nas décadas de 1870-1880, mas que aqui ganha sobretons de 
artificialismo estético.
9. AMADO, Gilberto, “Vênus fulva” (1910). Em: A Chave de Salomão e outros escritos, 1914, pp. 62-63. 
Amado referia-se a certa nobre russa que cometeu um crime em Veneza. O acontecimento foi relatado em: “O 
mês no estrangeiro – uma tragédia eslava em Veneza”. Leitura para todos, mar. 1910. Na mesma linha, Amado 
escrevia sobre o “individualismo violento”, de inspiração nietzscheana e “cujos antecedentes literários andam 
pelas obras de Dostoiewski, pela tragédia dannunziana Piu che l’Amore (...)”. AMADO, Gilberto, “Crime e 
Suicídio”, 1914, p. 83.
10. Cf. PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica, 1996, especialmente pp. 282, 307-
308 e 310.
11. HASSLOCHER, Laura. “Reportagens confidenciais”, 4 nov. 1916.

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Seleta publicou ainda uma fictícia fantasia epistolar entre três mulheres, que 
consiste  numa  suma  da  conexão  frenética  entre  romance  russo  e  “alma  russa”. 
“Renata” é carioca, mas nunca saiu da capital, “Maria da Graça” é a provinciana 
e “Magdala” é a esteta decadente. Mora num palácio em Florença “a sorrir o seu 
sorriso triste” e a dispensar conselhos sobre, entre outras coisas, literatura russa, da 
qual é sacerdotisa-mor. A “remessa” de missivas começa quando Renata solicita a 
Magdala mais noções sobre os pré-rafaelitas. Em troca, promete-lhe:
(...) uma copiosa leitura dos russos. Ensaiei um pouco o teu Gorki e não me dei mal 
com ele... Mas não me peças os anarquistas sem literatura, por Deus! Ainda ontem dois 
senhores  da  Academia  Brasileira  trocaram  tão  furiosamente  idéias  sobre  eles,  aqui  em 
casa, que acabaram por já não saber mais quais eram as próprias asneiras e atribuíam-
se reciprocamente as que afirmavam no começo da discussão. Resultado: a abertura dos 
nossos salões foi um fiasco.
12
Magdala felicita a amiga pela aproximação com o evangelho russo:
 Tu me pareces disposta a grandes leituras, e eu te felicito por isso. E também porque 
não queres saber dos anarquistas russos, sem literatura, embora não saiba o que entendes 
por isso. Todo o anarquismo russo, Renata, é literatura. O anarquismo russo sem literatura 
é o errante sem pão, sem lar, abandonado à neve, aos ursos das estepes, e que mal percebe 
o que os grandes anarquistas – Dostoiewsky, Tolstoi, Gorki... – lhe dão em páginas que 
nunca ele deverá ler. Hei de te falar mais tarde, noutra carta, da alma russa, da alma triste e 
dolorosa do Eslavo. Perceberás melhor o anarquismo russo através de um perfil dessa gente 
que eu amo tanto, e em cujo convívio eduquei a minha emoção de americana nos trópicos. 
Prometeste-me a sério uma copiosa leitura dos Russos. Prometo-te, por minha vez, muitas 
sensações russas, que vivem na minha alma de iniciada na Grande Religião...
13
 
Maria da Graça, por sua vez, entra na conversa e se torna mais uma adepta da 
doutrinação russa de Magdala:
Queres saber o que eu li? – as Vidas dos Santos e O Crime e o Castigo de Dostoïewsky! 
Papai não gostou de me ver agarrada ao terrível romance; disse que, com a minha mania 
de ler tudo, eu terminarei no hospício. Os pais não gostam das filhas muito inteligentes! É 
uma verdade, minha amiga...
14
 
 Na carta seguinte, Renata faz uma pausa nas profundezas russas e fala do clima 
do Rio, dos malefícios do sol para a pele e da desgraça de não poder usar peles no 
clima tórrido. Na seqüência, Magdala retoma a sua missão e dá a entender que o 
amor pela literatura russa nasceu em uma temporada passada no país:
12. “Cartas femininas”, 9 jun. 1915.
13. “Cartas femininas”, 16 jun. 1915. 
14.  “Cartas femininas”, 23 jun. 1915.

Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”...
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(...) A minha alegria de retornar a Florença e a minha tristeza de abandonar a Santa 
Rússia dos meus encantos, nem t’as posso dizer!
Com certeza isso não pelo prazer que eu tivesse em escutar a todo o momento milhares 
e milhares de bocas a entoarem, num patriotismo religioso, o Bojê Tsara Krani! Silni dero 
jarni, stsar stouvyna slavouna slavounam... que é, nestes tempos de sangue e de destruição, o 
hallali com que aquele povo de alma mística investe contra as hostes inimigas... Nem porque 
a felicidade de me encontrar novamente em Florença seja menor. Às vezes cuido explicar o 
que vai em mim, numa cisma que me diz que eu poderia sentir ainda mais Florença, se os 
meus quinze meses de Rússia fossem trinta, sessenta, fossem mais... Contudo esses poucos 
meses já me bastaram para encontrar uma Florença diferente daquela outra que eu vira, 
apenas com os olhos de... ocidental.(...)
A paisagem só exprime o que existe em nós, na nossa alma. Ainda me lembro da sensação 
que  me  deu  o  primeiro  crepúsculo  do  Neva...  Havia  uma  cruz  e  o  pope  ia  abençoando 
aquelas cabeças em contrição. Entretanto o que os meus olhos deveriam ter visto: alguns 
vaporetti arrepelando as águas que rebrilhavam; a silhouette de uma ponte e uma multidão 
de operários que ia a recolher.
15
  
Magdala voltaria à carga em cartas subseqüentes, mas, no começo de 1916, 
a  revista  pôs  fim  a  esses  eflúvios  da  alma  russa  e  encerrou  a  série  das  cartas 
“russas”.
-  3  -
Era  comum  trazer  tais  topoi  de  excesso  e  desmedida  com  coloração  russa 
às  onipresentes  “fantasias”  literárias  de  inícios  do  século  vinte.  Algumas 
misturam temas do repertório político “niilista”, referências ao romance russo e 
procedimentos do simbolismo e do decadentismo. Em “Decadência”, Coelho Neto 
relata a vida de duas princesas, uma alemã, outra russa, ambas caídas na miséria. 
As  agruras  dessa  última  desafortunada  são  tecidas  à  imagem  e  semelhança  da 
“Krotkaia de Dostoiewsky”,
16
  trazida para o miolo da narrativa como referencial 
para uma situação que beira o melodrama. Talvez Coelho Neto tivesse em mãos 
a edição da Plon traduzida por Halpérine-Kaminsky em 1886, da qual constava, 
além de Krotkaia, o arqui-sentimental L’arbre de Noel e seus extremos de patético 
(existentes em Dostoiévski, reforçados pela tradução/adaptação).
17
 
Outra  situação-limite  é  apresentada  na  trajetória  folhetinesca  do  aventureiro 
“Steelman”:
15. “Cartas femininas”, 7 jul. 1915.
16. NETO, Coelho, 1925, p. 74.
17. BOUTCHIK, V, Bibliographie des ouvres littéraires russes traduites em français.

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Na Rússia, Steelman comprometeu-se no niilismo, aliando-se, em pacto tremendo, com 
os impulsivos do otchaiane. Fez-se apóstolo da regeneração, adorou o mujik e preparou 
uma bomba que explodiu à beira de linha férrea dois segundos depois da passagem dum 
trem imperial e, uma tarde, à margem do Neva, depois dum conflito, foi espezinhado por um 
esquadrão de cossacos ficando sobre a neve, com o corpo em pandarecos, e uma costela a 
pedir solda.
18
 
 
Uma  palavra  enigmática  exige  explicação.  “Ottcháianiie”  (“desespero”)  foi 
definida  no  ensaio  O  romance  russo,  do  visconde  francês  Eugène-Melchior  de 
Vogüé, texto de 1886 que foi a pedra de toque da recepção crítica da literatura 
russa no ocidente, como a espécie de paixão dolorosa (passion doloreuse) que seria 
o fundamento das narrativas dostoievskianas. É através desse termo russo que o 
crítico francês busca definir aquela qualidade excessiva, especialmente visível na 
composição  das  personagens  e  em  sua  complexa  psicologia,  que  impressionou 
tantos leitores de Dostoiévski:
A  maioria  destas  naturezas  pode  ser  reduzida  a  um  tipo  comum:  excesso  de 
impulsividade, a otchaïanié, este estado de coração e de espírito para o qual me esforço em 
vão para encontrar equivalente em nossa língua. Dostoïevsky analisa-o em muitos pontos: 
É a sensação de um homem que, do alto de uma torre elevada, debruça-se sobre o abismo 
aberto e experimenta um frisson de volúpia ao pensar que poderia atirar-se de cabeça para 
baixo. Mais depressa, e terminemos! ele pensa. Às vezes são pessoas bastante calmas e 
comuns que pensam assim... O homem encontra gozo no horror que inspira aos outros... 
Estende sua alma em um desespero frenético, e este desesperado pede o castigo como uma 
solução, como qualquer coisa que “decidirá” por ele.
19
 
O  imaginário  da  belle  époque,  altamente  favorável  aos  surtos  nevróticos  do 
romance russo, confirmava que os textos de Dostoiévski estavam sob a égide do 
ottcháianiie, numa simbiose entre a consciência desarranjada então atribuída aos 
eslavos, a deliqüescência mórbida decadentista e a força normativa da psicopatologia 
criminal. O mesmo ponto já havia, aliás, atraído a atenção de um dos primeiros 
resenhistas da literatura russa no Brasil. Em 1888, o gaúcho Germano Hasslocher 
comparou as Recordações da casa dos mortos com A carne, de Júlio Ribeiro, e 
viu na volúpia do servo chicoteado delineada naquela primeira obra justamente 
o  “excesso  de  impulsividade”  a  que  Vogüé  se  referia.
20
  Segundo  o  francês,  as 
Recordações da casa dos mortos estavam eivadas de exemplos de ottcháianiie: a 
morte de Mikhailov e a história do “velho-crente, de conduta exemplar, que lança 
18. NETO, Coelho, 1925, p. 346.
19. VOGÜÉ, Melchior de, 1888, p. 227.
20. HASSLOCHER, Germano, 1888.

Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”...
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uma pedra ao comandante unicamente para ser passado pelas varas, ‘para sofrer o 
sofrimento’”.
21
 
Um  curioso  conjunto  de  contos  “pseudo-russos”  –  narrativas  escritas  com 
temas  e  personagens  russas,  tentando  de  alguma  forma  reproduzir  o  efeito  da 
“nova” literatura – escritos nos primórdios do século vinte nos ajudará a continuar 
o percurso. 
A  existência  de  temas  russos  na  literatura  ocidental  antecede  o  boom  do 
romance de Dostoiévski e Tolstói em fins do século dezenove. Balzac escreveu 
uma “novela russa”, narrativas românticas fizeram dos eslavos bons selvagens e a 
aliança franco-russa, dos anos 1870 em diante, montou obras e mais obras a partir 
de estereótipos da vida russa. O folhetim firmou sólido e duradouro pacto com o 
“tema” russo; cossacos deram colorido a incontáveis romances de aventuras.
22
 
  Embora  seja  difícil  separá-la  completamente  dessa  tradição,  há  uma  forma 
de narrativa pseudo-russa umbilicalmente dependente do boom, em que aparece a 
marca dos novos temas críticos e dos romances recém-aparecidos.
O  próprio  Melchior  de  Vogüé,  primus  inter  pares  da  crítica  receptiva  ao 
romance russo, não resistiu à tentação e escreveu novelas pseudo-russas. Reuniu-as 
no volume Coeurs russes.
23
  O visconde tentou recriar a modulação turguenieviana, 
apresentando caçadores e servos imersos em melancolia senhorial. Arriscou também 
uma estória semi-gótica, com enforcamentos e indivíduos aparentemente mortos 
que ressuscitam. Ou seja, aqueles momentos excessivos que o leitor, segundo o 
jovem bacharel Clóvis Bevilacqua, escrevendo pioneiramente sobre Dostoiévski 
em 1889, tinha que fazer “esforços terríveis para suportar”.
24
 
Contos e Crônicas (1922), de Felício Terra, e Histórias da vida e da morte 
(1907), de Tomás Lopes são exemplos brasileiros desse micro-gênero. Os contos 
que os compõem foram publicados originalmente nos primeiros anos do século 
vinte.  Felício Terra  (pseudônimo  de  Nuno  de Andrade)  publicou  seus  “pseudo-
russos”  durante  a  guerra  russo-japonesa. A  polaridade  maniqueísta  gerada  pelo 
evento  será  um  dos  muitos  elementos  melodramáticos  presentes  nos  contos.  O 
autor não faz a menor questão de esconder que a Rússia – e, mais do que ela, a 
21. VOGÜÉ, Melchior de, 1888, p. 227. Um comentário sobre o “ottcháianiie” está em BACKÈS, Jean-Louis, 
Le Roman russe et l’esthétique du roman”, 1989, p. 30.
22.  Para  uma  compilação  extensa  de  temas  russos  na  Inglaterra,  dos  primeiros  contatos  elizabetanos  até 
romances de espionagem da Guerra Fria, cf. CROSS, Anthony, Under western eyes, 1517-1825, 1971; do 
mesmo autor, The Russian theme in English literature, from the sixteenth century to 1980, 1985. Na América 
Latina, cf. SCHANZER, Georges, Russian literature in the Hispanic world: a bibliography, 1972.
23. Uma delas foi publicado na revista Primeira, a 10 abr. 1929, com o título “O tempo da servidão.” 
24. BEVILAQUA, Clovis, 1889.

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autocracia russa – é um vilão digno dos piores momentos de Eugene Sue. O Japão, 
por sua vez, é um herói de alma pura.
25
  Para pintar o quadro, Terra valeu-se das 
“negras cores da indignação e do asco” empregadas pelo “solitário Isnaia (sic)”
26
  
para descrever o despotismo russo.
As  narrativas  tratam  de  acontecimentos  e  personagens  ligados  ao  conflito 
de 1905, ou a episódios da perseguição aos “niilistas” dos anos recentes. Quase 
todos os contos são cenas de tribunal ou de cárceres subterrâneos.
27
  Em “Madame 
Stoessel”,  a  mulher  do  comandante  caído  em  desgraça  após  a  derrota  naval 
confronta o conselho de juízes tiranos, culpa a tirania russa “e despedaçando o 
vestido para mostrar o flanco desnudado em que os cacos de metralha gravaram 
extensa cicatriz vermelha, gritou,  pela terceira vez  –  Stoessel!”. A  atitude surte 
o  efeito  típico  das  reviravoltas  melodramáticas:  “Todos  baixaram  as  pálpebras. 
Aquela cicatriz irradiava como um sol, e os farrapos do vestido brilhavam como 
auréolas”.
28
  “No calabouço” apresenta a mesma situação: o encontro folhetinesco 
entre uma princesa e o assassino de seu marido, vítima de bomba niilista. Crime 
e  castigo:  o  bandido  andrajoso,  à  beira  de  virar  nobre,  e  a  princesa,  tornando-
se  aos  poucos  prostituta  misericordiosa,  entabulam  conversa  improvável  sobre 
a  intensidade  dos  respectivos  sofrimentos.  O  preso  faz  longo  discurso  sobre  a 
brutalidade da autocracia, prostra-se aos pés da princesa e pede-lhe perdão pelo 
ato nefando. Reproduz, enfim, a “religião do sofrimento”, noção que Melchior de 
Vogüé, a partir do encontro entre Raskólnikov e Sônia, situou no cerne do universo 
dostoievskiano,  e  assim  a  transformou  em  uma  das  intervenções  críticas  mais 
decisivas jamais escritas. 
O tema da prostituição, numa narrativa banhada do início ao fim de ottcháianiie, 
está explícito em “Lina, de Moscou”. Novamente, juiz e acusada estão frente a 
frente. Lina era acusada de ter assassinado quatro soldados. Quando da captura, “fora 
surpreendida a beijar um punhal, com fervor de alucinada, talvez com requintes de 
alucinada, talvez com requintes de carniceira”. Lina, cujas mãos “tremiam, como 
25. Para não deixar dúvidas, veja-se, resumidamente, como ele descreve Oyama, o líder militar japonês: “(...) 
brando,  profundamente  religioso,  admiravelmente  estóico;  insensível  ao  medo  e  bravo  por  temperamento; 
clemente, justiceiro e sábio; (...) esmoler, sensitivo, artista, às vezes poeta, crente inabalável da supremacia 
asiática do Japão e nas magnificências da futura vigília mongólica; (...) misto de matemático e de teólogo, de 
taumaturgo e de aventureiro (...)” TERRA, Felício, Contos e crônicas, 1922, pp. 156-157.
26. Idem, pp. 171-172. O autor refere-se de forma arrevesada a Tolstói.
27. Livros como os de Stepniak pintavam quadros terríveis das prisões russas, e é certamente a essas referências 
que Terra se voltava quando compunha seus contos.
28. TERRA, Felício, op. cit, p. 23.

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se  o  frio  do  aço  houvesse  provocado  estranhas  crispações  de  gozo”,
29
    sentia  a 
volúpia do martírio, identificada por Vogüé no homem prestes a arremessar-se ao 
chão e no velho-crente supliciado pelo chicote siberiano. E também atribuída por 
Gilberto Amado aos “músculos ágeis de cobra” da condessa Tarnowska, que era, 
lembremos, a “mais estranha alma de mulher que jamais conheceram os narradores 
de  melodramas”.  Lina,  contudo,  matou-os  porque  haviam  atentado  contra  sua 
pureza,  lançando-a  no  meretrício. A  revelação  é  suficiente  para  desconcertar  o 
magistrado e torná-lo presa da nevrose:
O juiz aproximou-se da desventurada, e insensivelmente tentou despedaçar as algemas 
com as unhas. Queres fugir, filha? – inquiriu o juiz, rangendo os dentes e com as pupilas 
enormemente dilatadas, como as do agonizante. Queres fugir, mártir? Perguntou ainda o 
juiz, colando os lábios febris nas mãos geladas da assassina. (...) O juiz inteiriçou o corpo, 
distendeu os músculos num largo espreguiçamento felino, tomou o punhal de Lina, deu um 
grito de desespero e correu, delirante, pelo corredor afora...
- Quero matar o grão-duque... quero reabilitar a dignidade humana... quero vingar o 
infortúnio da Rússia...
E brandia o punhal, com a fronte gotejando suor, os cabelos hirtos, a boca cheia de 
escuma... Estava louco. 
As Histórias da vida e da morte de Tomás Lopes contêm narrativas de temática 
diversa;  as  “russas”  estão  agrupadas  na  seção  “Páginas  mascaradas”,  que  o 
autor, conforme o prefácio deixa transparecer, considerava o eixo do volume. O 
experimento não foi publicado em edição obscura: veio a lume pela Garnier, que, 
aliás, editou outras obras do autor. Morto precocemente, em Paris, Lopes deixou 
número considerável de livros publicados. Totalmente esquecido nos dias de hoje, 
não se trata, pelo menos no que diz respeito à circulação de seu nome entre os 
contemporâneos, de um pobre-diabo de bulevar.
O  prefácio,  assinado  de  Paris,  oferece  pequeno  relato  dos  meandros  da 
composição  e  publicação  das  composições  pseudo-russas.  Os  ventos  vindos 
da  capital  francesa  trouxeram  a  “influência  eslava”
30
  da  religião  do  sofrimento 
e animaram Lopes a redigir, em outubro de 1902, o primeiro dos contos russos 
(“Dúvida”), sob pseudônimo de “Ivan Kalganov”. 
A presença de extremos, de extração melodramática, fica visível já no título do 
volume e de suas seções: vida e morte, gelo e sol. E a idéia da máscara, inscrita 
na  seção  dedicada  aos  russos,  remete  ao  emblema  máximo  da  “imaginação 
29. Idem, p. 300.
30. LOPES, Tomás, Histórias da vida e da morte, 1907, p. II.

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melodramática”, tal como foi mapeada por Peter Brooks.
31
 Além dessas referências, 
Lopes  pode  muito  bem  ter  se  baseado  nas  antíteses  constantes  em  títulos  de 
romances russos (Guerra e paz, Crime e castigo).
Em contraste com outros contos do livro, as narrativas russas têm em comum 
títulos  sintéticos,  que  evocam  o  ideário  simbolista:  “Dúvida”,  “Mistério”, 
“Agonia”, “Vertigem”, “Espectro” e “Febre”. Logo se vê que tratam de situações-
limite, de vórtices emocionais, o que é confirmado pela leitura. São dois suicídios, 
assassinatos  de  todo  tipo  e  um  atentado  político,  basicamente  variações  de 
ottcháianiie.  Os  demais  contos  não-russos  constroem  ambientação  fúnebre  e 
melancólica, mas sem tamanho apreço pelo terrível e pelo impressionante; pelo 
crime, tema dostoievskiano por excelência. Só os contos pseudo-russos conjuram 
recursos patéticos no último grau.  
Os  contos  “russos”  são  os  únicos  que  fazem  uma  modesta  tentativa  de 
experimentação  literária. Ao  atribuir  a  narração  de  cada  um  deles  a  um  objeto 
específico,  Lopes  tenta  obter  efeitos  de  estranhamento.  Contudo,  a  intenção 
promissora fica dissolvida pelo próprio autor no prefácio, em que ele se apressa 
a explicar o significado de cada uma das narrativas das “Páginas mascaradas” e 
transforma a tentativa de simbolização em mero jogo de esconde-esconde. As vozes 
do punhal, do revólver, da torre, do veneno e da locomotiva e da fome se manifestam 
por  monólogos  interiores,  certamente  inspirados  nos  diálogos  e  na  consciência 
cindida dos personagens de Dostoiévski. Claro está, porém, que Lopes não chega 
nem perto disso. O que ele consegue, por vezes, é criar um símile de determinadas 
traduções de Halpérine-Kaminsky e de outros tradutores “amaciadores” que deram 
o tom à primeira leva de traduções dos russos na França.
O propósito de Tomás Lopes é emular o “gênio” dostoievskiano, comover e 
chocar o leitor. A abertura de “Dúvida” traz o lugar-comum repetido em todos os 
contos: “Era uma fria noite de inverno; lá fora geava como no Pólo; e eu pensava 
nas criancinhas que morriam de frio e fome, hirtas e enregeladas na neve da cidade”. 
A opulência do aposento do “Príncipe Dievouchkine”, cheio de tapeçarias e peles, 
contrastava, novamente, com “as criancinhas morrendo de frio...”.
32
  Em “Mistério”, 
o frio, a miséria das crianças e a perfídia da mulher, volúvel e contraditória, são 
elementos definidores de ambiência “russa”. Signos de que Lopes lança mão para 
criar um simulacro dostoievskiano:
31. BROOKS, Peter, 1995.
32. LOPES, Tomás, 1907, p. 45. 

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Oh! As incoerentes injustiças da alma feminina! Nobre e belo Dmitry Fefitchine! Se eu 
pudesse salvar-te! Mas como? Se eu não tenho nem vontade nem querer? Nunca lamentei 
tanto a minha imobilidade passiva; se eu pudesse desfazer-me e queimar-lhe o seio branco 
onde arfava uma doçura de rola e se encondia manhosamente um coração de víbora! Ah! 
Aquela mulher, que tão calma e capciosamente enterrava na terra úmida o doce Dmitry 
Ferfitchine, tão bom e amoroso! 
33
Morto  “Ferfitchkine”  pelas  mãos  de  Olga,  o  enterro  é  preparado  sob  clima 
plúmbeo: “Daqui a três dias é o enterro de Dmitry Ferfitchkine; que será de Olga? 
Que miséria! Que frio!”. O clima invernal, espécie de ottcháianiie meteorológico, 
serve de recurso fácil para dar cor local e caracterizar a miséria humana. Tão fácil 
que Lopes deixa de lado qualquer preocupação com a verossimilhança. Embora o 
conto seja datado de “S. Petersburgo – junho – 18++”, este é o cenário desolador do 
verão russo: “Lá fora ventava e caía a neve. Quanta gente àquela hora não acharia 
sabor e encanto à vida? (...) Lá fora, o vento e a neve... Que frio! Que frio!”.
34
  
Em “Agonia”, o príncipe Astafy Tvorogov manuseava seu punhal e preparava-se 
para  cometer  suicídio,  com  o  mesmo  ottcháianiie  que  apoderou-se  de  “Lina  de 
Moscou”.
O apelo ao patético desbragado mantinha evidentes laços intertextuais com as 
traduções afrancesadas de Dostoiévski. Em 1897, o paulista Diário popular oferecia 
aos leitores versão da “Árvore de Natal.” Originalmente fragmento do Diário de 
um escritor, no contexto finissecular circulava na supracitada coletânea de novelas 
e contos adaptada por Halpérine-Kaminsky. Eis como se encerra a estória: 
Depois de apalpar a face de sua mãe, admirou-se de senti-la completamente imóvel e 
tão fria como a parede.
- Ah! Faz muito frio aqui.
Ficou ainda algum tempo junto dela; tendo sua mãozinha pousado no ombro da morta, 
assoprou os dedos para aquecê-los e agarrando o seu gorro que caíra, saiu às apalpadelas 
(...)
Mas em compensação fazia calor, havia o que comer, ao passo que aqui vê-se movimento, 
quanta gente caminha, quantos cavalos, quantos carros e sobretudo quanto frio! Ah, este 
frio!
35
  
A  ligação  estreita  com  as  traduções  francesas  maciçamente  disponibilizadas 
após  1883-1886  se  torna  ainda  mais  clara  na  escolha  dos  nomes  e  sobrenomes 
russos  dos  personagens  das  “Páginas  mascaradas”.  Tomás  Lopes  obteve  suas 
33. Idem, pp. 55-56.
34. Idem, p. 68.
35. DOSTOIÉVSKI, Fiódor M, “A árvore de Natal”, 24 dez. 1897.

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informações  em  um  apanhado  de  obras  russas,  em  especial  as  de  Dostoiévski. 
A  começar  pelo  próprio  pseudônimo  com  que  publicou  o  primeiro  dos  contos 
pseudo-russos em O país: “Kalganov” está nos Irmãos Karamázov. “Tvorogov” 
é personagem de La femme d´un autre. O “Dievouchkine” do primeiro conto é 
protagonista de Gente pobre (O nome “Yestafy”, embora existente em outras obras 
de Dostoiévski, também está nesse primeiro romance). “Ferfítchkine” aparece em 
Notas do subsolo. “Volkonsky” pode ser Valkóvski, de Humilhados e ofendidos 
(segundo  Vogüé,  um  “traidor  de  melodrama”),  ou  variação  dos  Bolkônskis  de 
Guerra e paz. A caracterização dos personagens, portanto, é tributária direta da 
difusão de traduções estabelecida havia cerca de quinze anos.
Amparado nas novas traduções de literatura russa disponibilizadas pelo boom
Tomás Lopes parece seguir bem de perto a letra das considerações dos críticos 
literários.  Em  “Vertigem”,  o  facínora  Androwitch  Forfitkaia  prepara-se  para 
arremessar a esposa Catharina Vanikaia do alto da torre-narradora:
De súbito Androwitch Forfitkaia, reunindo as suas cansadas forças de bêbado, ergueu 
Catharina  à  altura  da  balaustrada;  houve  um  arrepio  naquele  corpo  fraco  que  tremia, 
e ele, o ébrio, gozou alguns instantes o prazer de sentir aquele pavor! E eu, quieta, na 
minha imobilidade de tantos anos, não podia libertá-la, nem salvá-la! Os verdes olhos de 
Catharina estavam parados de assombro; ela adivinhava que os braços cansados do marido 
já não poderiam sustê-la mais tempo; era certa a sua morte, era certa a sua perdição! 
36
Nada mais, nada menos do que transposição literal do ottcháianiie tal como 
descrito em O romance russo – a “sensação de um homem que, do alto de uma torre 
elevada, debruça-se sobre o abismo aberto e experimenta um frisson de volúpia ao 
pensar que poderia atirar-se de cabeça para baixo (...) O homem encontra gozo no 
horror que inspira aos outros...”. Em Histórias da vida e da morte não falta sequer 
o contexto “niilista”, no qual Coelho Neto inseriu a desesperada palavra russa. O 
último dos contos de Tomás Lopes (“Febre”) narra justamente um atentado suicida ao 
trem do tzar Alexandre. Tentando entender as razões que haviam levado o terrorista 
a tal impulso, a locomotiva-narradora pergunta a si mesma, numa referência velada 
a Dostoiévski, “que recordações pungentes trazia ele da Sibéria”.
37
 Recordações 
pungentes comovem o  leitor: os  contos russos  de Tomás Lopes terminam onde 
começam os de Felício Terra – no tribunal, onde crime encontra castigo.
36. LOPES, Tomás, 1907, p. 75.
37. Idem, p. 84. Em 1879, Hartmann tentou explodir o trem do Tzar. Este acontecimento foi um dos muitos 
que passaram a fazer parte do repertório “niilista” mobilizado por Coelho Neto, Tomás Lopes e Felício Terra. 
Victor Hugo saiu em defesa do terrorista, então exilado na França.

Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”...
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Resenhando  as  Histórias  da  vida  e  da  morte,  Souza  Bandeira  opôs-lhes  um 
senão muito razoável: o que havia, afinal, de especificamente russo naquilo tudo? 
A seu ver, nada: 
As Histórias revelam ainda o vício, tão comum entre nós, de escolher para sujeito da 
elaboração literária a vida artificial da sociedade européia, conhecida através de impressões 
livrescas de terceira ou quarta mão (...) Estou certo de que, publicando o seu novo volume, 
quis apenas o autor documentar a sua tão interessante individualidade literária. Vê-se bem 
que não seria mais capaz de fazer um conto russo, descrevendo uma sociedade através das 
traduções de Tolstoi ou de Dostoievski, e analisando a psicologia de indivíduos do Catete 
ou das Laranjeiras, a quem apenas “russificou” os nomes e fez tomarem um “drosky” em 
vez do conhecido bonde.
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Apesar disso, Bandeira via alguns méritos nos contos: estimulavam os sentidos 
– produziam “verdadeiros calafrios” – e faziam bom uso do vernáculo. Ou seja: um 
amálgama de ottcháianiie em pitadas com a boa e velha correção gramatical tão 
valorizada pelos exegetas da época. Formava-se, em suma, afinidade eletiva entre 
as teses de críticos como Vogüé, a nevrose atribuída à alma eslava e fetichizada 
pela belle époque e o conjunto de traduções e adaptações francesas de literatura 
russa.
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