Revista de estudos orientais
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Paris: Les Belles Letres, 1984. 39 DO ESTUDO ACADêmICO DA bÍbLIA HEbRAICA Suzana Chwarts* Resumo: Este artigo apresenta uma retrospectiva sintetizada da trajetória dos estudos acadêmicos da Bíblia Hebraica, ressaltando a heterogeneidade das abordagens empregadas no processo de compreensão e interpretação do relato bíblico. Palavras-chave: Metodologia, Bíblia Hebraica, Estudos Bíblicos . Resume: This article presents a synthesis of the trajectory of the academic studies of the Hebrew Bible, focusing on the heterogeneity of the approaches employed in the process of comprehension and interpretation of the Biblical account. Keywords: Methodology, Hebrew Bible, Biblical Studies. Muitos estudiosos atuais 1 consideram Benedict Spinoza, filósofo judeu do século 17, o fundador da abordagem científica à Bíblia Hebraica, com base em seu Tratado Teológico-Político, publicado em 1670. Neste o autor argumenta que a Bíblia Hebraica deveria ser objeto de estudo científico e formula uma linha metodológica para seu estudo, fundamentada no exercício crítico da razão e da história. As conclusões de Spinoza sobre Deus levaram a sua excomunhão e os estudos acadêmicos da Bíblia Hebraica permaneceram engessados na teologia judaica e cristã, até seu renascimento no círculo protestante do século 19, na Alemanha. Inspirados pela crítica histórica, que já havia sido aplicada aos textos clássicos durante a Renascença, e influenciados por correntes intelectuais de seu tempo - como o romantismo e a teoria da evolução - os estudiosos alemães romperam definitivamente com a teologia, submetendo o texto bíblico à investigação filológica da mesma forma que um texto secular, e desconsiderando todas as tradições relacionadas à autoria e autoridade. * Professora Doutora de Estudos da Bíblia Hebraica na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 1. Sarna, Naum M.. Understanding Genesis.The World of the Bible in the Light of History. New York: Schocken Books, 1966, p. xxi. Suzana Chwarts - Do Estudo Acadêmico da Bíblia Hebraica 40 O principal pilar da discussão teológica – o conceito de verdade – foi descartado para abrir espaço à investigação crítica, livre dos pressupostos da religião e da tradição exegética. Se, por um lado, pesquisadores como Wellhausen empreenderam um estudo minucioso e erudito, por outro, chegaram a conclusões que refletiram apenas a bias do final do século 19: sua idealização da religião imaculada de Israel era profundamente romântica e sua caracterização do judaísmo pós-exílico como sistema meramente legalista e declinante era profundamente anti-semita. A sua Hipótese Documental, entretanto, tornou-se uma afirmação clássica, uma teoria que estudiosos posteriores desenvolveram, aceitaram ou rejeitaram, de uma forma ou de outra, sempre dialogando com ela. A idéia da combinação de diferentes fontes, de períodos diversos, no desenvolvimento do que hoje conhecemos como Pentateuco tornou-se um pressuposto amplamente aceito entre estudiosos da Bíblia Hebraica. Um evento no mundo da arqueologia mudaria para sempre o curso dos estudos da Bíblia Hebraica: as descobertas dos arquivos reais e bibliotecas de cidades mesopotâmicas, canaanéias e egípcias e seus tesouros epigráficos revelaram aos estudiosos modernos o fato, até então desconhecido, de que o antigo Oriente Médio formava um continuum cultural, com intensa troca de influências numa extensa área que incluía a Mesopotâmia, a Síria, Canaã, a costa da Ásia Menor, Chipre, Creta e Egito. A descoberta dos escritos do antigo Oriente Médio coincidiu com a emergência de novas disciplinas como a antropologia, a sociologia e o estudo do folclore; e tanto as novas evidências quanto as novas disciplinas foram incorporadas ao estudo acadêmico da Bíblia Hebraica, que passou a ser ministrado nas grandes universidades, inserido em áreas como: estudos da religião, estudos orientais ou semitas e estudos do judaísmo. Esses documentos permitiram a sincronização com informações contidas no relato bíblico, e as analogias foram empregadas para equacionar a distância e a proximidade entre as culturas, e sobretudo, para restituir o texto a seu contexto original e retirá-lo do vácuo sagrado da exegese. O influxo de data extrabíblica, juntamente com o estudo da tradição oral e do folclore, criou as bases para um novo tipo de abordagem, que transferiu o foco de interesse do aspecto histórico para o literário. O foco passou a ser a intenção do autor/ redator bíblico, que se manifesta na forma e na organização de seu trabalho em unidades textuais maiores e mais complexas. A esta abordagem convencionou-se chamar crítica redacional, embora seja parte integrante da crítica histórico-gramatical, e não constitui um método diferenciado. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 39-43 - 2008 41 Sua preeminência, nos últimos anos, é coerente com o crescente interesse pelo estudo de unidades maiores de texto, que vem banindo, gradativamente, o antigo sistema de análise versículo-por-versículo, prevalecente na tradição teológica e nas primeiras décadas de estudos acadêmicos. Mas foi a crítica literária que abriu, de fato, uma nova perspectiva para se compreender a Bíblia Hebraica. A aplicação de sua metodologia, apoiada no estudo de filologia semítica comparada, permitiu a apreensão dos recursos expressivos do hebraico bíblico - as nuances dos valores léxicos, a força das metáforas e dos paralelismos, a integridade estilística e rítmica do texto. A idéia central desta abordagem consiste em considerar o conjunto da Bíblia Hebraica como uma obra literária, e estudá-la tal como ela é, concentrando menor atenção nas circunstâncias históricas de sua composição. O método empregado é o da crítica retórica (close reading), mas o objetivo final é a apreensão do significado do todo, a visão holística e não atomística. Por esta razão, cada vez mais ênfase tem sido colocada no enfoque interdisciplinar no âmbito dos estudos bíblicos. Este percurso possui a qualidade de criar novos parâmetros de compreensão, além de exigir a movimentação em diversas áreas disciplinares e o confronto entre conceitos e instrumentos teóricos de correntes diversas. A trajetória interdisciplinar é articulada, no caso da Bíblia Hebraica, a partir dos paradigmas da crítica literária e da crítica histórica que, associados, propõem um eixo de raciocínio fecundo, valioso na elucidação do texto e da visão de mundo que expressa. Tal é a opinião de grande parte dos estudiosos modernos, como Gotwald 2 , por exemplo, que argumenta ser o eixo comum aos paradigmas a preocupação central com a estrutura: a estrutura dos escritos, por um lado – objeto da crítica literária – e a estrutura da sociedade israelita e judaica na qual a Bíblia Hebraica foi escrita e transmitida. Os textos da Bíblia Hebraica – compostos, alinhavados, editados e reeditados ao longo de nove séculos – formam o corpus literário fundacional da cultura israelita, e são suas palavras e imagens que compõem as tradições autoritativas desta cultura. No processo de compreensão deste núcleo texto/cultura é necessário reconhecer, e tentar ultrapassar, as limitações de cada método já consagrado nos estudos bíblicos. Isto se dá exatamente através do olhar criativo, renovador, que um outro método oferece. 2. Gotwald, Norman K. Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica (trad. Anacleto Alvarez). São Paulo: Paulus, 1988, p.41. Suzana Chwarts - Do Estudo Acadêmico da Bíblia Hebraica 42 Assim, a resposta a uma pergunta sobre o rei Davi - afirma Gotwald 3 - gravita por canais metodológicos distintos, e transborda. Cada resposta evidencia um aparato – lingüístico, literário, antropológico, arqueológico – empregado com o intuito de iluminar o texto bíblico, através de uma confluência fértil, mas rigorosamente controlada, de modelos. E, no entanto, cada resposta evidencia também novos questionamentos, saturados de subjetividades, de caráter inesperado, o que não permite a inércia nem a observação pré-moldada. É este caráter da Bíblia Hebraica – o de estar sempre aberta à descoberta e a novas interpretações - que tem suscitado a demanda de abordagens inovadoras para seu estudo. Entre as mais recentes, destacam-se o feminismo, o liberacionismo e o pós- colonialismo (agrupadas sob o termo “guarda-chuva” hermenêutica cultural), nas quais a posição do intérprete não é apenas explicitada e validada, mas serve como princípio normativo no processo de interpretação, centrado nas categorias de classe, etnia e gênero. O estudioso explora ângulos, até então desprezados, deslocando temas do passado para a sua realidade, e articulando-os – passado e presente - de tal maneira que ambos são transformados. A Bíblia se impõe como texto de liberação, principalmente a narrativa do êxodo e os escritos dos profetas, núcleo irradiador desses movimentos revolucionários. Também o fluxo contínuo de informações impulsionou os estudos bíblicos a incorporar novas abordagens. Desde 1970, a arqueologia tem revelado cada vez mais data sobre a configuração da população, costumes domésticos e religiosos, práticas agrícolas, pecuaristas e comerciais do mundo bíblico. O material epigráfico, descoberto em escavações e datado com precisão, constitui uma evidência valiosa para a contextualização dos escritos bíblicos. Essas informações, juntamente com um amplo leque de possibilidades de modelos comparativos de sociedades não urbanas descentralizadas, têm gerado novas hipóteses sobre os primórdios de Israel, sem que nenhum consenso tenha sido ainda alcançado. É através deste “caleidoscópio multimetodológico” que a Bíblia Hebraica emerge como um documento essencialmente humano, que registra o anseio do homem para compreender Deus nas relações humanas e na história de um povo. Por esta razão, embora essencialmente secular, o estudo acadêmico não deve dessacralizar a Bíblia Hebraica. Não se pode exilar o elemento sagrado de escritos que foram formulados com o propósito explícito de ser literatura sagrada, nem 3. idem, p. 41. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 39-43 - 2008 43 desconsiderar os significados de revelação, punição e redenção atribuídos a eventos da história dos antigos israelitas. A sobrevivência dos livros que compõem a Bíblia Hebraica deve-se à crença por parte dos israelitas de que ela continha a palavra de Deus e palavras inspiradas por Deus. Embora não se empregue uma hermenêutica específica para tratar de textos consagrados pela tradição como sagrados, qualquer outra postura, que não a de respeitar esta dimensão dos textos bíblicos, implica perverter a sua essência. O desafio do estudo acadêmico da Bíblia Hebraica, contudo, não se restringe à abordagem crítica. Os modos de expressão, categorias de pensamento e o ambiente sociocultural pressupostos nas narrativas e nas leis são estranhos ao pensamento ocidental, embora o Antigo Testamento seja o livro mais lido do mundo. O contato da grande massa de leitores, e surpreendentemente de vários estudiosos, com a Bíblia Hebraica dá-se através de suas inúmeras apropriações: traduções, versões, paráfrases antigas e modernas. Já o texto hebraico suscita uma compreensão totalmente distinta, em particular por sua raiz triconsonantal que permite múltiplas significações, entrelaçando sentidos e construindo um texto fértil em polissemias e ambigüidades, um desafio a qualquer exercício de tradução. Debruçar-se, horas a fio, sobre o original, implica reformular nosso padrão de pensamento e raciocínio, e mergulhar nas dimensões de uma racionalidade antiga e desconhecida, que se revela aos poucos, encantando-nos no processo de sua leitura interminável. Bibliografia: Gotwald, Norman K. Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica (trad. Anacleto Alvarez) São Paulo: Paulus, 1988. Sarna, Naum M. Understanding Genesis.The World of the Bible in the Light of History. New York: Schocken Books, 1966. 45 NAS TRAmAS DAS NOITES Christiane Damien Codenhoto* Resumo: Este artigo apresenta uma abordagem geral sobre o percurso do livro As mil e uma noites, desde sua origem controversa e seus manuscritos até suas traduções e recepção no mundo ocidental. Palavras-chave: As mil e uma noites, Galland, literatura árabe, Chahrazád, Islã. Abstract: These article presents a general approach about the trajectory of the book The Thousand and One Nights, since its controversial origin and its manuscripts, until its translations and reception by the western world. Key words: The Thousand and One Nights, Galland, Arab literature, Shahrazád, Islam. As Mil e Uma Noites. Um dos títulos mais belos do mundo, segundo Jorge Luis Borges. O número mil nos remete, imediatamente, à imagem do inesgotável, inexaurível. Talvez, seja essa a sua encantadora beleza: um livro que nos conduz ao infinito, a um tempo desprovido de limites. Histórias tecidas, cuidadosamente, todas as noites e, em cada uma delas, a singular elaboração que vislumbra a sua terna permanência naquele que nelas se aventura. Do ponto de vista dos estudiosos, o título remete à influência da expressão de origem turca bin bir, que significa “mil e uma”, utilizada para indicar uma grande quantidade. E, realmente, um dos traços mais marcantes das narrativas mileumanoitescas reside no próprio sentido e atmosfera do título da obra, ao pensarmos na diversidade de textos de um livro que, na verdade, não possui uma única redação. Assim, o tempo nos legou uma série de manuscritos que diferem entre si quanto ao número, diversidade e variantes das mesmas histórias. Zotenberg, orientalista que introduziu os estudos dos manuscritos de As Mil e Uma Noites, classificou-os em três grupos. O primeiro, denominado Família A¬, é composto de manuscritos oriundos de países muçulmanos da Ásia, os quais formam o grupo oriental e são considerados os mais antigos. Os demais – Família B e C – são de origem egípcia e se diferenciam quanto à distribuição de contos. __________ * Mestranda do Programa de Língua, Literatura e Cultura Árabe da Universidade de São Paulo. Christiane Damien Codenhoto - Nas tramas das Noites 46 Os textos datam dos séculos XIII ao XIX, mas as questões acerca da data de sua elaboração e o local ainda são bastante controversas. O fato de As Mil e Uma Noites terem sido edificadas ao longo dos séculos por autores anônimos torna praticamente impossível, até os dias de hoje, o conhecimento exato acerca do local de nascimento da obra. O único ponto de convergência, entre os diversos estudiosos, é o fato de as histórias serem originárias do Oriente. No século XIX, orientalistas europeus realizaram longas discussões acerca da origem de As Mil e Uma Noites. Langlès (1814) defendeu a origem indiana, Hammer (1827 e 1839), a persa e a indiana e Silvestre de Sacy (1817 e 1829), a árabe. No final do século XIX, de Goeje, um orientalista holandês, sustentou uma tese que ressaltava a origem persa com elementos judaicos. Silvestre de Sacy considerou que as hipóteses da origem indiana e persa não foram apresentadas de maneira convincente, sustentando que As mil e uma noites eram uma obra árabe porque possuíam o “espírito e a concepção de mundo” muçulmanos. O autor ressaltou essa idéia esclarecendo elementos que perfazem o universo árabe: todos os personagens dos contos são muçulmanos; a maior parte dos acontecimentos se dá na região dos rios Tigre, Eufrates e Nilo; as ciências reais ou fantásticas são as mesmas de que os árabes se vangloriam; os gênios são da mitologia árabe; as religiões identificadas na obra são o Islamismo, o Cristianismo e o Judaísmo, além das referências a Moisés, David e Asaf, que eram desconhecidos na Pérsia e na Índia antes da introdução do Islamismo. Outro ponto importante levantado por De Sacy é o fato de que a história do Islã não recusa elementos de outras culturas, como observaram autores árabes do século X, ao identificar a interferência persa e indiana na produção literária árabe. Desse modo, os contos mileumanoitescos se constituem por um entrelaçamento dos saberes chinês, judaico-cristão, persa, indiano, árabe e até mesmo o grego, o que, porém, não interfere na óptica de mundo muçulmana do livro. Os pesquisadores ainda hoje apontam entre as fontes mais longínquas de As Mil e Uma Noites uma obra de origem persa, chamada Hazar afsán – “mil mitos”. Da Pérsia e da Mesopotâmia (que hoje correspondem, respectivamente, ao Irã e ao Iraque), estima-se que as histórias seguiram para a Síria por meio de cópias, desprovidas das regras rigorosas às quais os livros canônicos estavam submetidos, mas foram difundidas, sobretudo, através do sistema oral. Os relatos dos contadores foram propagando o texto pelo Oriente, provocando na sua forma escrita modificações e adaptações na linguagem, de modo que a redação foi compondo-se por um dialeto árabe intermediário entre o urbano – para o qual Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 45-49 - 2008 47 revela uma forte tendência – e o clássico – que permeia o texto durante o tempo todo –, como ressalta o tradutor Mamede Mustafa Jarouche 1 . Ademais, há referências concretas de um fragmento de manuscrito pertencente à primeira metade do século IX. O pesquisador iraquiano Muhsin Mahdi, à luz de demais estudiosos, propõe que este seria a primeira elaboração de As Mil e Uma Noites, compilado na cidade de Bagdá, no período da dinastia abássida. É possível ler, nesse fragmento, cerca de vinte linhas que constituem parte do “prólogo- moldura” – enredo que antecede as histórias contadas ao longo de um livro –, cujo conteúdo atém-se a uma personagem feminina chamada Chirazád que narra histórias junto com outra personagem chamada Dinazád; não é, entretanto, possível fazer uma única asserção sobre quais histórias eram narradas. No tocante à própria obra, As Mil e Uma Noites prestigiam a arte de contar. No “prólogo-moldura” o encantador ofício de narrar é posto a lume por meio da personagem-narradora, a ardilosa filha do vizir, Chahrazád, que, para se salvar da ameaça de morte feita pelo próprio marido – o rei Chahriár –, conta-lhe todas as noites curiosas histórias. Entrelaçando seus contos pelos fios dos elementos mágicos, coloridos e plenos de calor, Chahrazád, a hábil contadora, encanta o rei todas as noites e mantém a curiosidade de seu senhor suspendendo o final da última história ao raiar do dia. O marido vai poupando-a da morte para ouvir, na próxima noite, o desfecho da narrativa interrompida, que é seguida de novas histórias surpreendentes... Não podemos esquecer que os próprios personagens dos contos de Chahrazád são também habilidosos contadores. O pescador, o gênio, o vizir, o mercador, o médico, a princesa, enfim, os mais variados integrantes das histórias sabem contar as alegrias e desventuras que permeiam suas vidas e dos que estão ao seu redor, revelando a nós, leitores, idéias e valores do mundo muçulmano, sua história e o imaginário popular entremeado de elementos fantásticos. A voz concedida aos personagens para que contem as suas histórias acaba por construir uma complexa estrutura narrativa composta de contos inseridos no interior de outros contos que, por seu turno, são mantidos por um eixo condutor – edificado por Chahrazád, a exímia narradora da obra –, do qual partem e ao qual retornam as sucessivas histórias. O livro, que nos sugere a partir do próprio título a idéia de infinito, mais uma vez, agora pela sua complexa estrutura, nos conduz à imagem dos contornos espiralados de um campo sem limites, inesgotável, quase eterno. 1. JAROUCHE, M.M. O “prólogo-moldura” das Mil e uma noites no ramo egípcio antigo. Tiraz: revista de estudos árabes e das culturas do Oriente Médio. USP. FFLCH. Departamento de Letras Orientais. São Paulo: Humanitas, 2004, ano I, vol. 1, pp 70-117. Christiane Damien Codenhoto - Nas tramas das Noites 48 As Mil e Uma Noites aportaram na Europa no século XVIII, mais especificamente na França – regida por uma literatura plena de normas, todas elas embasadas na concepção clássica de autores gregos e latinos –, por meio da tradução do orientalista Antoine Galland; a partir de então, iniciou-se um processo de difusão dessas narrativas no Ocidente, que, seduzido pelos encantos de uma literatura e de uma cultura bem diferentes da cristã, passou a produzir inúmeras obras inspiradas por essas histórias ao longo dos tempos que se seguiram. Os primeiros tomos da versão francesa de Galland foram publicados no ano de 1704 e, durante os treze anos seguintes, ele completou a coleção dos contos com uma série de doze volumes. O orientalista baseou sua tradução num manuscrito árabe, datado do século XIV, pertencente ao grupo oriental, considerado o mais antigo das Noites. O manuscrito é constituído de três volumes e, hoje, encontra-se depositado na Biblioteca Nacional de Paris. A partir da tradução do orientalista francês, surgiram outros tradutores, entre eles destacamos E. Lane (1839) e Burton (1885) em língua inglesa; Mardrus (1899- 1904), René Khawam (década de 60), André Miquel e Jamel Eddine Bencheikh (década de 90), em língua francesa; Littmann (1921-1928), em alemão; Cansinos- Asséns (1955), em espanhol; e a primeira tradução em língua portuguesa por Mamede Mustafa Jarouche, cuja publicação foi iniciada em 2005. Embora a tradução de Galland tenha sido considerada, pelos orientalistas, infiel aos textos originais, “a pior de todas, a mais mentirosa e mais fraca” 2 , para Borges, ela foi a “melhor lida” 3 porque encantou, causou sensações de “assombro e felicidade” 4 a quem sobre ela pôde se debruçar. Não podemos deixar de lembrar que a versão de Galland foi a base para as traduções que se seguiram nos três séculos posteriores ao ano de sua publicação. A partir dela foram realizadas traduções nas mais diversas línguas no Ocidente e Oriente, além das adaptações para a literatura infanto-juvenil de A. Henri, na França, e dos irmãos Grimm, na Alemanha. O mundo conheceu, afeiçoou-se e se encantou por As Mil e Uma Noites apresentadas por Galland e, ainda hoje, as histórias mais conhecidas descendem do primeiro tradutor francês. Entre as várias acusações dirigidas a Galland, no tocante à infidelidade aos textos originais, está a de que o orientalista teria adaptado os contos ao gosto francês da época, além de ter acrescentado novas histórias ao livro. Entre elas estão as mais conhecidas, como “Aladim e a lâmpada maravilhosa”, “Ali Babá 2. BORGES, J.L. História da eternidade. Rio de Janeiro: Globo, 1986. p. 77-95. 3. Ibidem, p.78. 4. Ibidem, p.78. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 45-49 - 2008 49 e os quarenta ladrões”, “Príncipe Ahmed e a fada Pari-Banu”, “Abu Hassam e o adormecido desperto” e “Aventura noturna de Harun Al Rachid”, que não constam no manuscrito que lhe serviu de base. Tais histórias são atribuídas ao maronita Hanna Diap, que, no contexto de uma viagem à França, divertiu o orientalista e demais ouvintes com suas fabulosas narrativas. Khawam, no entanto, sugeriu que tais contos pertenceriam ao acervo turco 5 . De qualquer maneira, o modo como as histórias passaram a pertencer à obra é uma discussão polêmica; nesse sentido, como sugere Borges, o traço característico da obra é a própria inexistência de um texto acabado 6 . Cada tradutor, no passado, no presente ou nos tempos que estão por vir, contribui com uma versão diferente, mesmo porque há o fato de os manuscritos possuírem origem diversa; além da própria particularidade das línguas, que, no ato da tradução, interfere significativamente na elaboração do sentido do texto, mais um motivo para que Borges observasse a existência de muitos livros chamados As Mil e Uma Noites 7 . O livro trazido do Oriente por Antoine Galland inspira e instiga a criação de novas histórias e obras desde o momento de sua primeira publicação, na comedida França de Luís XIV. Pode-se até mesmo dizer que o romantismo despontava, timidamente, naqueles salões franceses do século XVIII, onde a leitura de As Mil e Uma Noites promovia a saída de um universo literário legislado, suscitando um imaginário liberto, tão valorizado e perseguido pelos autores românticos, tendência essa vivenciada até a atualidade. As Mil e Uma Noites foram fonte de inspiração para os autores do romantismo, que, na busca de elementos e lendas que identificassem as culturas nacionais, encontraram no livro árabe importantes referências: a figura do contador, os mitos, a religião e os valores morais presentes na obra. O reconhecimento da riqueza de As Mil e Uma Noites não ficou restrito aos autores românticos do século XIX. Ainda hoje é uma obra que inspira, desperta interesse, curiosidade e prazer naquele que nela se aventura. 5. Cf. NABHAN, N. N. As mil e uma noites e o saber tradicional. 1990. Tese (Livre Docência) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990, p.68. 6. BORGES, J.L. Sete noites. São Paulo: Max Limonad, 1987, p.87. 7. Ibidem, p.87. 51 ELEmENTOS FORmADORES DO ImAgINáRIO SObRE O jAPONêS NO bRASIL Rogério Dezem* Download 3.63 Kb. Do'stlaringiz bilan baham: |
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